Miguel Alvarenga - Todos, menos a banda
(que deu corda aos sapatos e desandou da praça no final da lide do primeiro
toiro, quando choveu que Deus a deu, não mais comparecendo no recinto, sendo
substituída por uma instalação sonora...), esqueceram a carga de água que
obrigou à paragem da corrida de ontem em Alenquer por cerca de meia hora,
retomando-se a função assim que o sol voltou a sorrir, tal o sucesso e o
ambiente de emoção que acabaram por marcar a tarde, que era a última do cabo
Jorge Vicente e de que se guardam na memória não apenas a grande actuação do Grupo
de Forcados de Alenquer, a provar que não há, nem pode haver, forcados de
primeira e forcados de segunda, continuando todo o mundo sem entender por alma
de quem não são aceites no seio da Associação Nacional de Grupos de Forcados
(um dia, espera-se, alguém há-de explicar), mas também a eterna e contagiante
vitalidade do eterno-triunfador Maestro Bastinhas e mais um grito de alerta dado pelo injustiçado Paulo Santos, os dois grandes toureiros da tarde.
Houve ainda bons momentos de Pedro
Franco (que está retirado, mas mantém a classe de outros tempos, ontem só não
triunfou porque lhe faltou matéria prima, lidou um raquítico exemplar da
ganadaria Santa Maria, que ainda para mais se adiantava e fê-lo em condições
impróprias para a prática do toureio, depois da chuvada e com o piso perigoso),
de Sónia Matias (que esteve alegre e desembaraçada, deixando contudo a ferragem
de forma irregular), de Filipe Ferreira (que se preocupou em tourear de frente
e com verdade, sem martingalas e demonstrou estar apto para a alternativa, no próximo domingo nas Caldas) e do jovem amador local Francisco Parreira (que
tem garra e oficío e começa a apontar carreira de sucesso). Mas ontem os dois
casos da corrida foram Bastinhas e Paulo Santos, sem esquecer, obviamente, a tarde emotiva vivida pelos forcados em dia de mudança de cabo.
É importante aplaudir e mesmo prestar
vassalagem (vassalagem, isso mesmo, como nos tempos dos reis) ao grande Joaquim
Bastinhas, que ontem voltou a ser um "jovem" à procura do êxito e em
busca de "oportunidades". Apesar dos quase quarenta anos de toureio
que já leva "em cima", trinta e um dos quais como profissional de
alternativa; apesar do "ano horrível" que viveu, primeiro com o corte
de um dedo que o manteve quinze dias afastado, depois com o trágico suicídio do
seu apoderado António Morgado e com o acidente (lesão no nervo ocular) sofrido
por seu filho Marcos que, embora não tendo a gravidade que podia ter tido, o
obrigou a parar e não deixa de ser preocupante. Apesar disso tudo e apesar dos
anos que, pelos vistos, não pesam e não contam para ele, Joaquim Bastinhas
continua sendo uma força da natureza. Impressionam e causam até inveja a muita
gente a sua vitalidade, a sua força, a sua raça, a verdade e a garra com que se
faz a uma arena, disposto outra vez e sempre a jogar a vida e a dar tudo por
tudo em busca de mais um triunfo, de mais uma tarde de satisfação dada aos
muitos que o seguem e o admiram há mais de três décadas. É incrível como se
mantém igual a si próprio e como se continua a superar a si próprio de corrida
em corrida.
Ontem em Alenquer, diante de um poderoso toiro de
Casquinha que não complicou, mas pedia contas, o Maestro de Elvas voltou a
empolgar. Dois compridos de praça a praça, curtos com a sua marca, a entrar
pelo toiro dentro, com a verdade e a emoção de sempre, um palmito e o sempre
esperado par de bandarilhas, seguido do salto do cavalo, imagem de marca de que
o público está sempre à espera, em mais uma tarde de apoteose, a deixar enorme
ambiente para quinta-feira no Campo Pequeno, onde é cabeça de cartaz da última
corrida da temporada lisboeta. Ainda e sempre: grande e único Joaquim Bastinhas!
Paulo Santos foi o outro
"caso" da corrida de ontem celebrada em praça portátil (cheia) em
Alenquer. Com estupendos cavalo, não erro se disser que deve ser um dos
toureiros mais bem montados do momento, desenhou uma faena de sonho onde fez
alarde das muitas qualidades que fazem dele um dos grandes cavaleiros da
actualidade - e também, por ironia do destino, um dos mais injustiçados nesta
Festa em que se perderam os valores de antigamente e onde os toureiros vão
"a mais" não pelo seu valor e muito menos pelos seus triunfos, mas
única e simplesmente por obra e graça de interesses, de jogadas e do poder de
apoderados que são simultâneamente empresários e se prestam a trocas e
baldrocas, ponho aqui o teu, pões aí o meu e assim se montam os cartéis das
touradas dos dias de hoje...
Desde a brega, à colocação, aos ferros,
aos remates, a lide de Paulo Santos foi um assombro. Uma actuação de
"porta grande" e daquelas que tornam os toureiros ricos, se executada
com sorte em Madrid, se desenhada na força de qualquer outro cenário que não
uma simples praça desmontável em Alenquer, que pena...
Terminou a brilhante actuação com um
arrojado par de bandarilhas em terrenos de alto compromisso e depois saltou do
cavalo e agradeceu no meio da arena, uma "reprise" do habitual número
de Bastinhas - atitude que só o futuro há-de dizer se lhe vai ou não custar
cara...
Este é o toureiro que deveria rivalizar
com Hermoso e com Ventura em Lisboa, este é o toureiro que deveria estar nas
grandes feiras, nas grandes praças e nas maiores competições - será que as
empresas ainda não viram isso ou será que há olhos que não querem ver isso?
Andamos há anos a ver todos os dias
"mais do mesmo", os ases do futuro que noutras épocas tanto
apontaram, parece que se eclipsaram este ano, a temporada tem decorrido sob o
signo dos "antigos", que ainda são quem triunfa e quem leva gente às
praças, um toureiro com a classe e o valor, mais a arte e a quadra de Paulo
Santos, faz falta nas grandes praças para dar nova vida e outro rumo a esta
Festa estagnada e adormecida. Estão à espera de quê?
Paulo Santos precisa de um grande
apoderado a seu lado. Precisa de uma operação de marketing que o torne
conhecido. Não tem a imagem gasta, não está visto, tudo pode ainda acontecer.
Este ano é um dos grandes triunfadores da temporada, mas ainda não chegou aos
circuitos principais - talvez pelo seu acanhamento, talvez pela falta de
empresários visionários. Falta um Fernando Camacho, falta um Manuel Gonçalves,
falta um Rogério Amaro (infelizmente vivo, mas afastado das lides), com os
quais tudo seria diferente e nisso, doa a quem doer, o Salgueiro tinha toda a
razão...
Muitos dos de hoje, com raríssimas
excepções (que, felizmente, as há), promovem os seus interesses em lugar de
promoverem a Festa e o seu futuro. Por outras palavras, estão a decapitar a
Festa - e foi essa, e só essa, a mensagem que eu quis deixar quando há dias deu
aquele "murro no estômago" e publiquei aquelas fotos dos jornalistas
decapitados, que poucos entenderam e tanto incomodaram certa gente. Mas a realidade, triste, nua e
crua, é mesmo essa: estão a decapitar a Festa.
Tivemos ontem dois significativos
exemplos do que é e do que devia ser, da justiça (à carreira de glória do
Maestro Bastinhas) e da injustiça (a um Paulo Santos ainda "na
prateleira" e "ignorado" pelas grandes empresas deste país) na
corrida de Alenquer. Joaquim Bastinhas veio do nada, não tinha família
toureira, diziam até que tinha "nome de palhaço", mas a realidade é que venceu e vingou
pelo seu valor. Bem sei que os tempos eram outros, mas as dificuldades são (sempre) as mesmas.
Paulo Santos vai ter que lutar e que nunca desistir, confiante de que um dia
chegará onde merece - porque merece mesmo. E, para bem da Festa e de nós todos,
vai mesmo ter que lá chegar acima. Porque faz falta e porque a sua presença nos
grandes cartéis e nas primeiras praças pode dar a volta a "isto" por
que todos esperamos. Precisamos urgentemente de um novo ídolo.
Falta falar dos toiros e dos forcados -
e não é difícil. Lidaram-se ontem, alternadamente, três toiros de Nuno
Casquinha, bem apresentados e de bom jogo (o primeiro, o terceiro e o quinto) e
três de Santa Maria (de vergonhosa apresentação o segundo, bons o quarto e
sexto).
Os Forcados de Alenquer pegaram sózinhos
os seis toiros, sem dificuldades de maior. O grupo é coeso e está num bom
momento, festejando com dignidade o seu 10º aniversário. Jorge Vicente
despediu-se ontem das arenas e da chefia com uma boa pega ao primeiro intento.
Emocionado, despiu a jaqueta, entregou-a ao novo cabo e foi passeado aos
ombros, com o público a aplaudir de pé.
Como manda a tradição, o segundo foi
pegado pelo novo cabo, David Vicente. Pena que o animal fosse tão
insignificante e tão pequeno, retirando assim o brilhantismo que se impunha à
primeira pega do novo líder dos Amadores de Alenquer, executada sem dificuldade
à primeira.
Seguiram-se os forcados veteranos e
ambos da fundação, Pedro Coelho (à segunda) e Carlos Miguel (à primeira), o
valoroso rabejador João Cruz (que pegou com galhardia à primeira) e o jovem
Samuel Martins, que se estreava na sua terra, executando a pega à terceira.
Exceptuando o verdadeiro banho público
colectivo que nos deixou a todos encharcados e obrigou à suspensão do
espectáculo durante quase meia-hora, a corrida decorreu em bom ritmo e foi bem
dirigida, como sempre, por Lourenço Luzio. No início da função, guardou-se um
minuto de silêncio em memória de Tiago Anselmo, forcado do Grupo de Alenquer
falecido por doença em 2010 e também de Rui Freixa, elemento dos Forcados de S.
Manços, que morreu há dias vítima de acidente de automóvel.
Finda a corrida, que contou com a
honrosa presença de Pedro Folgado, presidente da Câmara de Alenquer, foi
prestada homenagem ao industrial local Manuel da Graça (de 91 anos, que não se
deslocou à arena, mas assistiu à corrida na bancada e foi brindado pelos forcados),
com a presença na arena de todos os artistas e da neta do homenageado, Isabel
Medeiros.
Fotos M. Alvarenga, Pedro Batalha e Emílio de
Jesus/fotojornalistaemilio@gmail.com