sábado, 10 de agosto de 2019

Tomar: só tocaram guitarra os que têm unhas!

Marcos Bastinhas, Rouxinol Jr. e António Prates e os forcados do Montijo e de
Tomar viveram ontem uma noite de verdadeiro terror frente a toiros duros, sérios,
exigentes, mas mansos e perigosos, da ganadaria São Martinho. Mas corridas
deste calibre fazem falta para que se entenda de uma vez por todos que só quem
tem unhas é que consegue tocar guitarra!
Marcos Bastinhas reapareceu em grande forma e no seu máximo esplendor
depois da colhida em Évora e voltou a prestar a maior das homenagens à
memória de seu pai, honrando o nome e a imagem que ele defendeu ao longo
de anos e anos. Duas lides de risco e emoção "à Bastinhas"!
Tal pai, tal filho! Luis Rouxinol Jr. deixou ontem bem patente em Tomar a dimensão
do seu bom toureio de risco e de arte frente a toiros daqueles que ninguém
quer ver por perto...
Momentos da importante lide de António Prates ao terceiro toiro da noite, um
verdadeiro perigo com 650 quilos e um ferro (última foto) ao sexto toiro da
corrida


Noite muito complicada, noite mesmo de verdadeiro terror, ontem em Tomar, pela dureza que, mesmo sem classe, foi seriedade (e a Festa precisa disso!), dos toiros da ganadaria São Martinho. Bastinhas, Rouxinol Jr. e Prates impuseram-se com valor e decisão a todas as dificuldades e lograram dobrar com valentia e arte todos os Cabos das Tormentas. Os forcados foram heróis numa duríssima jornada, mas é preciso pôr os pontos nos iis e declarar que nem todos os grupos estão, na realidade, preparados para pegar toiros de verdade. O empresário Bolota foi, para mim, o maior triunfador da noite: trouxe à praça de Tomar, outra vez, o risco e a emoção. E isso é preciso, cada vez mais, para que "esta gente" perceba que a festa dos toiros não é coisa para meninos. É um espectáculo de risco onde, insisto, se joga a vida a enganar a morte

Miguel Alvarenga - É cada vez mais necessário e urgente que as pessoas entendam que o espectáculo tauromáquico não é, nunca foi e nem pode nunca ser, um circo de vaidades - mas sim uma arte, uma cultura e uma tradição secular onde o homem joga a vida a enganar a morte e onde nem sempre é ele o vencedor. Ao longo dos anos, muitos toureiros e forcados perderam a vida neste palco de risco e de emoção, onde a angústia e o horror se sobrepõem, muitas vezes, ao simples cenário de uma festa popular com tradições há muitos anos enraizadas no nosso povo. Não são todos os artistas que em outras artes desafiam a morte frente à força bruta de um toiro como o fazem os nossos toureiros e os nossos forcados. É aí que reside a essência do espectáculo dos toiros e essa é a forma de estar e ser artista tauromáquico que marca toda a diferença numa arena. "Creio que os toiros são a festa mais culta que há no mundo", disse um dia Frederico García Lorca.
O que ontem aconteceu na praça de Tomar não foi, nem assim pode ser referido, "uma carnificina". Foi, antes, e é preciso que isso fique bem claro, uma corrida de toiros sérios, duros, a exigirem e a transmitirem, mais que emoção, verdadeiro pânico. Foram toiros sem classe, com maldade, mansos. Foram, sim senhor. Mas também há toiros assim. E é preciso, foi sempre, haver toureiros e haver forcados que os enfrentem e que possam com eles. Era preferível os toiros não serem assim? Claro que era. Os de Veiga Teixeira, na quinta-feira em Lisboa, foram toiros duríssimos, emotivos, a pedir contas, mas foram toiros bravos, mas com casta, com classe e com raça. Também estivemos todos, como ontem em Tomar, com o Credo na boca do primeiro ao último minuto. Os de ontem só tiveram a diferença de ser mansos, ordinários, sem casta e nenhuma classe. Mas isso acontece às vezes. E quem é toureiro e é forcado tem que contar com isso. E mais importante: tem que estar preparado para isso.
Com todo o respeito pelos grupos de forcados amadores do Montijo e de Tomar, que ontem protagonizaram momentos complicadíssimos naquela arena - que mais parecia um campo de batalha -  é preciso reconhecer que não estiveram à altura do desafio e que, não propriamente por falta de valor, mas por falta de rodagem, que também quer dizer falta de preparação, são grupos que pegam pouco, não conseguiram levar o barco a bom porto. Outros grupos teriam pegado aqueles toiros de outra forma? Certamente que sim. Temos muitos grupos bons e preparados para pegar toiros de verdade. E temos outros que o não estão, apesar de também serem bons. Os do Montijo e de Tomar são grupos com historiais de respeito e por onde passaram muitos nomes consagrados ao longo dos anos. Neste momento, são grupos que actuam em poucas corridas por ano e que, precisamente por isso, não podem ter a preparação e estar no momento em que outros estão para fazer frente a uma corrida tão dura e difícil como a de ontem.
As seis pegas e as intervenções de todos os forcados vão poder ver já a seguir, numa análise detalhada e ilustrada com as fotos da noite de terror. Vamos agora aos toureiros. Onde tudo foi diferente. Precisamente por serem três cavaleiros que "toureiam todos os dias", que se encontram em grande momento de forma e que podem com todos os toiros, até mesmo com estes de São Martinho, como se viu.
Marcos Bastinhas, que reaparecia depois da colhida de Évora, fê-lo em grande forma e com o esplendor de sempre. "À Bastinhas", que é a maior das homenagens que nesta temporada ele pode fazer à memória - eterna! - de seu pai.
Os três toiros da primeira parte, dois com pesos demasiado exagerados e muito fora do que é a morfologia de um toiro - 620 (segundo) e 650 quilos (terceiro) - foram os mais ordinários e os que mais dificuldades impuseram. Os da segunda parte tiveram melhor comportamento, dentro da mansidão e do perigo, também da maldade, que foram a nota dominante desta noite.
Inteligentemente, Bastinhas despachou o primeiro toiro da noite com dois compridos e apenas três ferros curtos, fazendo o que podia diante de um oponente que ficava parado, esperava e dava "arreões" perigosos, que não é bem o mesmo que investir. Marcos esteve no regime usual, com alegria e grande comunicação com o público e deu aplaudida volta à arena.
No quarto toiro, um nadinha menos mau, impôs-se, pisou a linha de fogo, arriscou, foi-lhe à cara com raça e com valor e deixou ferros emotivos, terminando com um par que resultou perfeito. Euforia nas bancadas.
Frente a toiros destes não é fácil, para não dizer que é impossível mesmo, fazer grandes bilharetes. Mas a primeira lide de Luis Rouxinol Júnior, ao segundo e perigoso toiro da noite, foi uma lição de maestria de um jovem que se está a impôr com uma atitude e um valor que bradam aos céus. Impôs-se a um toiro que não tinha lide e venceu a batalha, que nem um herói.
O quinto toiro também deu trabalho, mas tinha um pouco mais de qualidade e Rouxinol pôde "espraiar-se" mais, isto é, pôde executar mais "à vontade" o seu toureio de arte, de risco e de afirmação plena. Todos os dias e em todas as praças ele diz que quer ir mais além. E ontem voltou a ir.
António Prates lidou em terceiro lugar o "bisonte" de 650 quilos que a seguir espalharia o terror na arena com os forcados. O toiro passou o tempo a tentar saltar as tábuas, assustou mesmo quantos estavam na trincheira quando ensaiou saltar, arrancou parte das tábuas e só não entrou na teia por milagre. Prates esteve valente e esteve, sobretudo, decidido. Nunca baixou os braços à luta e a sua actuação foi de um valor e de uma entrega sem fim.
No último toiro, empolgou o público com mais uma lide pautada pelo valor e pela ousadia, atributos próprios de um jovem que todos já perceberam que não vai ser só mais um e que vai marcar. É preciso reconhecer e louvar que só tomou a alternativa há um mês e meio e que, estando como ontem esteve diante de toiros daqueles que mandam os toureiros para casa - e ele não foi, nem vai -, é um toureiro de uma raça e de uma casta que deixam antever um futuro brilhante, assim Deus e a sorte o protejam sempre.
A corrida de ontem, onde ao início se despediu o cabo do Grupo de Tomar, Marco Fernando de Jesus, passando o testemunho a Hélder Parker, um forcado de eleição a quem desejo os maiores sucessos como novo cabo, foi dirigida por José Soares com rigor, exigência (só deu música no momento certo e também aqui é preciso que comece a haver maior seriedade por parte dos directores de corridas, que isto não é um espectáculo musical...) e também condescendência, sobretudo aquando das pegas. Esteve assessorado pelo médico veterinário Luis da Cruz.
Por último, uma necessária e justíssima palavra de apreço para o empresário João Pedro Bolota, que está já a ser alvo de muitos ataques nas redes sociais pelos estragos que os toiros fizeram ontem nos forcados. Bolota foi um dos mais destacados forcados deste país aos longo de trinta anos, sendo ainda hoje referenciado como um dos melhores primeiros ajudas de sempre. E isso, meus amigos, no tempo em que se pegavam toiros a sério e em que havia também forcados a sério. O "crime" dele ontem foi ter devolvido a verdade, a seriedade e a emoção do toiro à praça de Tomar.
Corridas como esta fazem falta. Para, repito, deixar bem claro e não permitir quaisquer dúvidas, que o espectáculo tauromáquico é um espectáculo de arte, mas sobretudo e também de risco e de emoção, de angústia e de palpitações. E são corridas como esta que separam o trigo do joio e põem cada qual no seu devido lugar. Para aqui andar, é preciso ter unhas para tocar guitarra. E quem as não tem, tem bem o que fazer: é ir embora.

Já a seguir, veja a sequência das dramáticas pegas de ontem na arena de Tomar.

Fotos M. Alvarenga