Provavelmente foi a última corrida da temporada na capital - atípica e possível - que o empenho, a coragem e a ousadia de Luis Miguel Pombeiro tornaram quase heroicamente uma realidade no Campo Pequeno, primeira praça do país. O empresário não decidiu ainda se vai ou não promover pelo menos mais uma corrida extra-abono no próximo dia 24. Para já ficaram seis corridas com um rescaldo geral de triunfo, mas também com alguns erros e algumas omissões, o que é natural e se aceita num ano difícil e tão estranho como este. É cedo ainda para se fazer um balanço detalhado, isso fica para uma próxima ocasião. Vamos para já centrar-nos na agradável corrida de ontem à noite
Miguel Alvarenga - Um bom curro de toiros da afamada ganadaria Passanha, uma das mais emblemáticas, com qualidade, dentro da linha Murube, alguns com pouca força e escassa transmissão, permitiu ontem que assistíssemos a bons momentos de toureio por parte dos seis cavaleiros de estilos variados e a rijas pegas, que já aqui destacámos ao pormenor, por parte dos dois grupos que fecharam o abono, os de Lisboa e do Ramo Grande, tendo estes últimos vindo dos Açores e trazendo atrás uma falange entusiasta de apoiantes que por eles torceram na bancada.
A praça apresentou uma bonita moldura humana, sem ter sido ainda desta que se esgotou a lotação permitida e a corrida foi transmitida para todo o mundo pela Ticketline/Live Stage, o futuro que promete fazer frente a um passado distante e referente às transmissões televisivas do canal estatal e de outros.
Significativa presença nas bancadas de vários deputados do CDS e do PSD a darem a cara pela Tauromaquia - e que foram brindados pelos forcados do Grupo de Lisboa. Brindes também dos dois grupos de forcados, nas duas primeiras pegas, ao empresário Luis Miguel Pombeiro, que na véspera fora muito justamente reconduzido pelos gestores do Campo Pequeno como promotor das corridas de toiros na Catedral; e ainda outro aplaudido brinde dos Amadores de Lisboa, no quinto toiro da noite, a Rui Bento, que durante catorze anos esteve brilhantemente ao leme da primeira praça do país. Justiça!
Os três mais destacados toureiros da noite foram ontem Marcos Bastinhas, Francisco Palha e o espanhol Andrés Romero.
António Ribeiro Telles, cabeça de cartaz de um elenco de jovens figuras, reafirmou o seu estatuto de maestria e absoluta veterania frente ao toiro que abriu praça e que tinha pouca transmissão. O Maestro lidou-o como só ele sabe, pausadamente, com detalhes da sua cátedra, elegendo com sabedoria os terrenos e cravando ferros de elevada categoria, superiormente rematados com aquele toque de classicismo e de arte que marca a diferença no toureio-maestria do grande António. Ainda e sempre um Toureiro que marca sempre a diferença e se mantém no trono do toureio clássico há anos sem haver quem lhe faça frente.
Marcos Bastinhas enfrentou em segundo lugar um toiro bravo de Passanha, que se arrancava com alegria de todos os terrenos. Deu o mote para o que seria uma memorável actuação, porventura a sua melhor dos últimos anos em Lisboa, com a decisão e a atitude de uma sorte de gaiola emotiva. Abriu a seguir o livro e protagonizou uma lide brilhante, com ferros de muita verdade, de praça a praça, a dar toda a prioridade ao oponente, cravando com verdade e emoção, reafirmando o momento áureo que atravessa, consagrando-se como um dos grandes triunfadores desta temporada - e relembrando, como sempre, essa imagem eterna e inigualável que foi a de seu pai, o enorme e eterno Joaquim Bastinhas. Actuação notável e, para mim, também de grande nostalgia e saudade ao fazer lembrar tão bem esse grande cavaleiro que nunca vamos esquecer. Grande Marcos! A honrar em todas as suas corridas esse peso enorme e essa importância tão grande de ser Bastinhas.
Duarte Pinto vinha este ano ao Campo Pequeno pela terceira vez. Todos sabemos que é apoderado por Pombeiro e mal do apoderado que não defende o seu toureiro, nisso Luis Miguel é exemplar - e nem podia deixar de o ser. Mas é preciso realçar o valor e o momento grande que o Duarte atravessa para justificar, sem matéria para criticar negativamente, a terceira inclusão do cavaleiro nesta curta temporada de seis corridas na capital. O toiro era nobre, também não tinha uma grande transmissão e deu a entender ao longo de toda a lide qualquer problema de visão. Duarte Pinto resolveu da melhor forma a menor qualidade do seu oponente e esteve brilhante, com cites de poder a poder e ferros de grande emoção a entrar pelo toiro dentro e a vencer o piton contrário. Não foi a sua melhor noite em Lisboa - mas esteve à altura do estatuto que conquistou nas últimas temporadas.
Francisco Palha ultrapassou de uma vez por todas o ensombramento que Lisboa lhe causava e o impedia de explodir. Ontem teve a sua melhor actuação de sempre no Campo Pequeno, a reafirmar a sua consolidação definitiva como uma das grandes figuras da nova geração e também a comprovar que é um dos grandes da linha da frente nesta temporada tão estranha e em que tem marcado a diferença. Uma sorte de gaiola ousada e depois uma lide para recordar, sempre a pisar a linha de fogo, sempre a emocionar e a galvanizar o público com o seu toureio de alto risco, de verdade e de afirmação. Melhor era impossível.
Andrés Romero foi este ano o único rejoneador espanhol que marcou presença nas nossas praças - e não foi por acaso. Toureiro de muita casta e grande valor, brilhou a toda a prova diante de um bom toiro de Passanha que aproveitou inteligentemente até à última gota. Sem exibicionismos, sem trazer à praça o cavalo "que anda em pé", respeitando ao máximo a solenidade da Catedral do Toureio a Cavalo e o seu entendido público (é verdade, este ano viu-se mais público aficionado nas corridas da capital, menos folclórico, mais exigente, mais sabedor) - que esteve com ele do princípio ao fim. Realizou uma faena séria, toureando de frente, cravando com verdade e emocionando o público. Justificou em pleno esta presença no Campo Pequeno e ganhou já, por seu mérito próprio, o estatuto de rejoneador-figura e que começa, como Pablo Hermoso e Diego Ventura, a suscitar o interesse e o entusiasmo da aficion portuguesa. Toureou muito bem. Triunfou.
Ao decidido e sempre arrimado Luis Rouxinol Júnior, que esperou o seu toiro no meio da arena também numa ousadíssima sorte de gaiola, evidenciando o querer e a muita atitude com ali estava, como está sempre, tocou ontem a fava do saboroso bolo de Passanha. Um toiro mais pequenote que os outros, com menos apresentação, sem força, caindo várias vezes e que cedo procurou o refúgio em tábuas, negando-se à luta. Rouxinol vinha, como vem todas as vezes, decidido a partir a loiça. A sua entrega, o seu desmedido talento e a sua raça conseguiram dar a volta à difícil situação que teve pela frente. E como com os maus toiros se vêem os bons toureiros, o público reconheceu o seu brilhantismo e aplaudiu com calor a lide possível que o jovem Rouxinol conseguiu realizar.
Excelente intervenção, discreta na maioria dos casos, sem excesso de capotazos, dos eficientes bandarilheiros das quadrilhas dos seis cavaleiros. Boa direcção de corrida do antigo forcado Marco Cardoso, premiando os cavaleiros com música nos momentos exactos, demonstrando rigor e aficion. Não colocou o lenço para os forcados Tiago Silva, de Lisboa (terceira pega) e Tomás Sousa, do Ramo Grande (quarta) porque as executaram ambos ao terceiro intento. Lisboa é Lisboa e exige seriedade na apreciação ao labor dos artistas, sejam toureiros, sejam forcados. Mas uma pega não deixa de ser uma boa pega mesmo se só concretizada à terceira tentativa...
Os dois grupos de forcados estiveram à altura dos Passanhas, nem sempre fáceis nas pegas, como já aqui ficou referido em pormenor. Os Amadores de Lisboa e os Amadores do Ramo Grande atravessaram no final a arena juntos e o público tributou-lhes enorme ovação - o que diz tudo sobre as suas valorosas actuações.
A corrida durou duas horas e pouco e essa é a grande virtude que fica este ano da imposição das novas regras em tempo de pandemia. Mais máscara, menos máscara (aguenta-se, ninguém morre por isso...), as actuais cortesias-curtas e os agradecimentos no final de cada lide e pega, sem a seca das demoradas e tantas vezes injustificadas voltas e mais voltinhas à arena, sem intervalo, reduziram, como há tanto se desejava, o tempo muitas vezes interminável das nossas touradas. Ainda bem. Espero e faço votos para que assim se mantenha tudo mesmo quando o vírus se for embora. Há-de ir um dia. E pelo menos ficou esta lição - que todos tinham dado voltas à cabeça para encontrar. Ninguém tinha conseguido encurtar a violência de ficarmos três horas, às vezes mais, a assistir a uma corrida de toiros. Conseguiu-a a covid-19. E volto a dizer: há males que vêm por bem...
Ponto final (ou talvez ainda não) na temporada do Campo Pequeno. O empresário Luis Miguel Pombeiro agradeceu no final o civismo demonstrado pelo público no rigoroso cumprimento das regras de segurança da "nova normalidade". E despediu-se com um "até para o ano". Os aficionados responderam-lhe com uma grande ovação. Ele é o grande triunfador da temporada e nas seis corridas do abono lisboeta, umas de maior êxito que outras, ficou bem patente, e neste ano era isso o que mais importava, que todos juntos soubemos resistir e marcar uma importante posição em tempos de pandemia, de diferença e que de início foram também de discriminação.
Obrigado, Luis Miguel - pelo esforço, pelo exemplo e pelo esplendor que soubeste imprimir com tanto talento a uma temporada que todos julgavam impossível.
Foto M. Alvarenga