sexta-feira, 5 de julho de 2013

A importância de se chamar João Moura!

O Maestro João Moura com os filhos Miguel, Tomás e João;
e, na foto de baixo, confirmando a alternativa a Manzanares
ontem na arena do Campo Pequeno


Miguel Alvarenga - Exilado no Brasil, nesses idos e conturbados anos finais da década de 70, o Prof. Marcello Caetano desabafou um dia com o seu velho e fiel amigo António Maria Zorro, jornalista e, anos mais tarde, meu saudoso companheiro de luta no semanário "A Rua" (que me contou esse desabafo tantas vezes), que "havia de novo e felizmente uma luz que no estrangeiro voltava a dignificar e a engrandecer o nome de Portugal". Eusébio já não jogava e Amália, coitada, acusada de ligações ao regime anterior, ultrapassara há muito o equador da sua fama. A "nova luz" era um menino de apenas 16 anos que em 1976 deixara a Espanha de boca aberta, incrédula na magia que ele deixara na arena de Las Ventas. "Enquanto toureou, o silêncio era tal que se ouviria uma moeda de uma peseta a cair na arena, se tivesse caído", escreveu um crítico famoso. Depressa os jornais destacaram aquele a quem baptizaram de "niño prodígio" e a dupla enorme que formava com o "cavalo branco", o célebre "Ferrolho", que fora de Mestre João Núncio. A "nova luz" vinha do Alentejo, das terras de Monforte e chamava-se João Moura. Nunca mais nada voltou a ser como dantes.
A sua "ditadura", afinal bem mais forte e mais sólida que a do Estado Novo, não houve "revolução" capaz de acabar com ela. O toureio a cavalo vivera os tempos de ouro de Mestre Núncio, evoluira, e de que maneira, com a ousadia e a irreverência de outro alentejano que fez história e se chamou José Mestre Batista, virava agora uma página nova e o livro tinha um rumo-outro com a arte de lidar toiros a cavalo segundo João Moura.
Quarenta anos depois - e quarenta anos são muito tempo! - o mesmo João Moura deixou ontem à noite na arena do Campo Pequeno, na corrida da revista "Flash", o perfume eterno da sua arte, a magia profunda do seu saber, a glória imensa da sua maestria, o temple incrível do seu toureio eterno. Toureou como só ele sabe e está tudo dito. Mesmo tudo. O resto, como um dia escrevi, são cantigas...
Está gordo, está velho, está falido, já devia ter ido embora há que tempos - dizem. Mas segue na dianteira e não há quem se lhe compare - essa é que é essa.
Quarenta anos depois - e quarenta anos, repito, são muito tempo! - João Moura continua igualzinho a si próprio. Trata os toiros "por tu" e a maestria parece facilidade. Os dois exemplares de Brito Paes que teve pela frente em nada facilitaram. Mas Moura ainda pode com todos os toiros. Foi magistral a primeira lide. Magistral a todos os títulos. Parecia tão fácil o que foi tão difícil. Tão simples e tão arrojado.
A segunda, a um toiro "menos colaborador", teve a marca incrível do saber de um Mestre. Coisa única - que se não descreve. Que enche de emoção a alma de qualquer aficionado. Melhor era impossível. Mas melhor que Moura nunca houve. E por isso...
Apenas um senão: a comemoração na primeira praça do país dos seus 35 anos de alternativa - que são também e principalmente 35 anos de uma glória sem igual - merecia mais público na bancada. Merecia a presença de todos os que lhe devem o que é hoje o toureio a cavalo. Meia casa foi muito pouco para um Toureiro chamado João Moura. Pena.
Meritório, altamente meritório, o desempenho, ontem, dos jovens Manuel Ribeiro Telles Bastos e Manuel Manzanares. Altamente meritório, por que nada fácil, depois do Maestro ter deixado tão alta a parada e ter dito, com a força e a verdade com que sempre o fez, que igual a si não há mais nada.
Manuel Telles Bastos é o mais clássico dos jovens cavaleiros. Ontem marcou a diferença na forma de tourear e de estar. Começou sem bandarilheiros na arena, numa emocionante e arriscada sorte de gaiola. Deixou logo dito que estava ali para reafirmar a sua anterior Temporada de êxitos. Representante de um estilo marcado por seu Avô, Mestre David, e continuado por seu tio António, toureou Manuel como os compêndios ensinam. Com a pureza e a essência que os antigos ditaram - e que dá gosto ver em analogia com o toureio moderno, hoje regido pelas distintas leis que João Moura impôs, em quarenta anos de maestria, na nobre arte de lidar toiros a cavalo.
Manuel Telles Bastos é um resistente. Um resistente às modas. Mantém, com a classe que o caracteriza, a marca de antigamente. Foi assim nas suas duas aplaudidas actuações, com ferros de poder a poder, cravados de alto a baixo e ao estribo, como dizem os livros que deve ser. Ou devia ser naqueles outros tempos - que Manuel teima, e muito bem, em manter vivos. Grande e bom Toureiro!
O espanhol Manuel Manzanares, filho de uma lenda do toureio a pé, o Mestro José Maria Manzanares - que ontem esteve ao lado do filho no Campo Pequeno - veio a Lisboa apresentar-se e confirmar a alternativa. Pupilo de Pablo Hermoso de Mendoza, toureia com a verdade e a classe do seu mestre, sem euforias nem "dentadas", sem modas mais ou menos descabidas ou estilos desconcertantes. Toureia à portuguesa, com a tranquila serenidade do seu mestre, com a verdade e a emoção com que toureiam os eleitos - e toureia de frente, não anda por "atalhos". A dinastia Manzanares deixa marcas no toureio a pé e começa também a deixá-las no toureio a cavalo - e Manuel vai longe. Disse-o ontem em Lisboa com duas vibrantes actuações que levantaram das bancadas os muitos aficionados entendidos que lá estavam.
No final e por que se lesionou, após forte embate contra as tábuas, o último toiro da noite, esperámos dez minutos por que fosse embolado o "sobrero". E ninguém arredou pé - o que atesta o interesse do público em esperar pela segunda lide de Manzanares.
Os toiros de Brito Paes, superiormente apresentados, dignos de uma primeira catedral como é o Campo Pequeno, impuseram seriedade e respeito, evidenciaram nobreza e casta, pediram contas aos toureiros - que lhas deram, sem tréguas de alguma espécie - e em nada facilitaram a vida aos românticos e valentes forcados dos grupos do Aposento da Moita e de Portalegre.
O grupo moitense, algo desfalcado das suas antigas vedetas - que, pelos vistos, terão acompanhado o antigo cabo Tiago Ribeiro na hora da despedida que não chegou, infelizmente, a haver - é agora um "grupo novo", com caras novas e cabe ao novo cabo José Pedro Pires da Costa a tarefa difícil de o recolocar na primeira linha, onde o deixaram cabos históricos como principalmente seu Pai, José Manuel Pires da Costa (fundador do grupo há 38 anos), João Simões e depois Tiago Ribeiro.
Os caras são bons, apenas falta grupo e ajudas, com o que teria sido bem mais fácil ontem consumar as pegas. Pegaram José Broega (à segunda), José Maria Bettencourt (à terceira, pega brindada a Nuno "Mata", que provocou uma das maiores ovações da noite) e Nuno Inácio (à segunda).
O Grupo de Portalegre, bem mais coeso e mais estável, "mais grupo" em suma, teve uma exibição notável frente aos duros toiros de Brito Paes. Alexandre Lopes fez a pega da noite, ao segundo intento, com ajuda fantástica de Rui Varela, no quarto toiro da corrida. Miguel Zagalo pegou o primeiro do gurpo alentejano, à segunda tentativa; e Ricardo Almeida fez a última pega, à terceira.
Houve arte nos capotes dos bandarilheiros, merecendo aplausos o labor dos veteranos Ernesto Manuel e João Ribeiro "Curro", bem como dos jovens João Ganhão, Gonçalo Montoya e António Telles Bastos, bem como dos três peões de Manzanares.
O novo director lisboeta João Cantinho esteve acertado ao "leme" da corrida, que se iniciou com um minuto que era silêncio, mas o público preferiu transformar em estrondosa ovação (bonito!) em memória de José Maria Cortes. Os forcados de Portalegre brindaram a sua primeira pega a elementos dos Amadores de Montemor. Lamente-se que as primeiras pegas dos dois grupos, como se impunha, não tivessem sido brindadas também à memória do já saudoso cabo do Grupo de Montemor, assassinado à facada e que quinze dias antes fora autor de uma pega enorme naquela mesma arena.
A Festa continua, tem que continuar, mesmo depois dos dias difíceis e tristes que chocaram o meio taurino. A noite de ontem no Campo Pequeno foi disso a prova e João Moura, em momento de inspirada e sublime maestria, a provar que continua sendo o primeiro, foi o único dos cavaleiros que ergueu aos céus o seu tricórnio. Até nisso ele marcou ontem a diferença. Quem sabe, está. E por isso ele está e continua no trono há quarenta anos - é a importância de se chamar João Moura.

Já a seguir: não perca os Momentos de Glória de ontem no Campo Pequeno – todas as fotos de Emílio de Jesus.

Fotos Emílio de Jesus/fotojornalistaemilio@gmail.com