O ferro que levantou o público de Madrid no primeiro toiro, em terrenos da crença e de grande compromisso, demonstrando a decisão e a atitude do toureiro |
Arte e temple na lide do primeiro toiro |
Orelha premiou faena "ao ritmo do fado" e Madrid pôs-se de pé a aplaudir o novo "Niño Moura"! |
Miguel Alvarenga - Foi ali, naquela
arena e naquele cenário majestoso da primeira e mais importante praça de toiros
do mundo, a Monumental de las Ventas, que explodiu há quarenta anos a revolução
mourista e se decretou de uma vez por todas o conceito moderno do toureio a cavalo,
que hoje todos interpretam e todos seguem e que naquele ano, verdadeiramente
histórico, de 1976, sopravam em Portugal os ventos conturbados da abrilada e da
traição, um "niño prodígio" chamado João Moura e um cavalo branco de
nome "Ferrolho" haviam de consagrar para todo o sempre e conquistar
como sua aquela praça e aquele público, tão exigente e tão aficionado.
Estive lá e lembro-me como se fosse
hoje. No dia seguinte não se falava de outra coisa em Madrid e no mundo, o eco
da apoteose cruzara oceanos e chegara ao Brasil, enchendo de orgulho o Prof.
Marcello Caetano, a iniciar o seu exílio, porque de novo se falava por razões
positivas do nome do país que ele, apesar de tudo, ainda amava. Eusébio e
Amália já não eram o que tinham sido e João Moura ostentava agora a imagem do
novo ídolo de um país que quase perdera o seu brilho.
O silêncio em Las Ventas era tal, quando
João Moura e o "Ferrolho" interpretaram um bailado de maravilha que
jamais se tinha ali visto ou em outra parte qualquer, que na imprensa li no dia
a seguir que se uma moeda de uma peseta tivesse caído na arena se teria
certamente ouvido.
Quarenta anos depois, o nome João Moura
está de novo nos cartazes da Isidrada e a Monumental recebe uma entrada de mais
de três quartos para o ver. O novo Moura que sábado triunfou em Las Ventas é
acarinhado e aplaudido por um público que não esqueceu nunca seu Pai e que não
o ovaciona por ser filho, mas sim por ser toureiro bom e por a todos relembrar
o que ali aconteceu durante quatro décadas, dando gloriosa continuidade à
revolução, com a mesma arte, a mesma raça e a mesma consistência na forma de
interpretar e de nos fazer sentir na alma a força e o valor que lhe estão no
sangue.
Casaca azul, que de azul se preferiu
sempre vestir seu Pai em Madrid, o sorriso confiante e a tranquilidade de quem
está moralizado, encastado e consciente de que naquela Monumental há que
superar os nervos, a tensão, a pressão (tanta e tão grande) e triunfar, falar
mais alto, marcar a diferença, impôr a sua tauromaquia.
João Moura Júnior tinha no sábado como
companheiros de cartel dois novos valores do rejoneio, Andrés Romero e Luis
Valdenebro, este último filho do antigo cavaleiro sevilhano do mesmo nome, que
tantas tardes repartiu cartel com seu Pai.
Não era difícil adivinhar, mas não
deixava por isso de ser preciso, que Moura se iria distanciar a léguas e marcar
verdadeiramente a diferença.
Andrés Romero tem ganas e está bem
montado, mas falta-lhe ainda "virar muitos frangos" para chegar ao
topo. Alternou o bom com o mau e teve o azar de matar sempre mal, pelo que foi
silenciado nos dois toiros e escutou mesmo alguns assobios no segundo.
Luis Valdenebro é uma versão actualizada
e muitíssimo melhorada de seu Pai. Demonstrou ousadia, querer, ambição e até
boas maneiras, sobretudo quando ladeou ao longo de toda a arena, emocionando o
público a escassos centímetros da cara do toiro. Esteve mais brilhante que o
seu conterrâneo, mas também lhe faltou sorte na hora de matar os toiros, sendo
aplaudido no primeiro e silenciado no segundo.
João Moura Jr. foi verdadeiramente
"outra loiça". Muitíssimo bem montado e com um cavalo precioso de
matar de Francisco Maldonado Cortes, o "Dali", de ferro Paim (que foi
a cereja no topo do bolo num reforço imprescindível à sua magnífica quadra e
lhe permitiu culminar as duas brilhantes actuações com dois certeiros rejonazos),
Moura obteve um importante triunfo "ao ritmo do fado", como escreveu
o cronista Ismael del Prado no jornal "La Razón".
O seu primeiro toiro, de Benítez Cubero,
como os restantes (à excepção do terceiro, que pertencia a Pallarés e foi
aplaudido no arraste), deu bom jogo, tinha mobilidade e alguma nobreza, mas não tinha cara e não transmitiu
emoção. Valeu a arte mourista para quase fazer brilhar o toiro e lhe sacar a
faena que à partida parecia condenada. Não era, pela falta de cara e de trapio,
um toiro de Madrid. Mas o toureiro era. E por isso, no final, recebeu João
Moura uma fortíssima ovação e teve leve petição de orelha, insuficiente para
que fosse, como merecia, a garantia da sua segunda e tão desejada saída em
ombros pela porta grande. O preço de abrir praça tem sempre uma factura alta e
Moura pagou-a. Mas sorriu, ciente de que não estava ainda tudo, nem nada,
perdido.
O segundo toiro, quarto da ordem (em
Espanha e graças aos deuses, não existe intervalo) tinha muito melhor
apresentação, tinha cara e tinha trapio e serviu, investia de todos os terrenos
e com ele João Moura pôde dar largas à sua imensa arte, quer a cravar (foi
enorme aquele curto em terrenos de compromisso, com o oponente na crença e a
arrancar-se com perigo), quer a bregar e a lidar, toureando com o temple e a
maestria dos eleitos, que não são assim tantos e entre os quais ele se continua
a destacar e a elevar como o primeiro.
Lide rotunda, sem uma falha, e empolgante, que culminou
com outro certeiro rojão, levou o toiro pouco tempo a cair e quando caíu, João
Moura deu um salto de euforia, elevou-se no ar, parecia ele que ia da arena aos
céus eternizar a glória, e de pé se puseram todos, a acenar lenços brancos, a
aplaudir o génio, até que a orelha foi concedida, mesmo levando o seu tempinho,
mas foi e então a praça explodiu e de explosão feliz se encheu também o rosto
do toureiro, estava cumprida a tarde e estava escrita uma importante página no
mais importante dos cenários taurinos de todo o mundo, Madrid.
Volta lenta, sorriso nos lábios, o
público a levantar-se à passagem do novo Moura, sereno, tranquilo, senhor de
si, colhendo os aplausos, o carinho, o reconhecimento do público madrileno,
levando nos braços a bandeira de Portugal, o orgulho nacional outra vez, que
alguém das bancadas lhe atirou em jeito de fazer lembrar que aquela tarde, na
terceira corrida de rejoneio da maratona de Santo Isidro, era uma tarde
portuguesa e de louvor à nossa tão distinta arte de lidar toiros a cavalo. Mas
mais que isso: à arte de tourear dos Mouras, que ali mesmo nasceu, fora de
portas, há quarenta anos, a impôr ao mundo que agora era assim que se ia passar
a tourear.
Rui Bento, o apoderado, irradiava
felicidade e sorrisos havia-os também nos rostos de orgulho do apoderado
espanhol Jorge Arellano e de todos os da sua quadrilha, os bandarilheiros Diogo
Malafaia, Jorge Alegrias e Benito Moura, o fiel Carlos Barreto, o moço de
espadas Fábio Derreado. Lá em cima, num tendido alto da bancada, a presença
serena de sua Mãe, Teresa Brás, de sua tia Cristina e de Filipa Telles de
Carvalho, a actual Mulher de seu Pai. Também presente e super-feliz, Concha
Rodríguez, a noiva do João, radiante pelo sucesso, bem como alguns dos amigos
de sempre, entre os quais João Margalho.
"Não lhe passa pela cabeça a
tensão, a pressão e os nervos com que entrei naquela arena...", confessava-me
no final o João - e eu sei. E é essa, precisamente, a glória maior dos eleitos,
superar tudo isso com a tranquilidade, a serenidade e a calmaria que ele nos
transmitiu a todos e ao público, vencendo o peso de estar em Las Ventas,
ultrapassando mesmo o que foi em quarenta anos o grande "calcanhar de
Aquiles" de seu Pai, a sorte de matar, que o fez sair nove tardes em
ombros pela porta grande e o impediu de a abrir muitas mais.
João Moura Júnior provou ali, mas
ninguém tinha dúvidas nenhumas, que está no caminho certo e a subir a escadaria
que o há-de levar, como a seu Pai, ao trono sagrado do toureio equestre
mundial. Há um novo "Niño Moura" que Madrid começa agora também a
idolatrar. Um toureiro maduro e consistente, com nome de dinastia e responsabilidade
redobrada e que finalmente tem a força de se impor como o novo Moura e já não
apenas como "o filho de João Moura".
Em Madrid, na tarde de calor de sábado, o público
levantou-se a aplaudir o futuro e a relembrar o passado. Portugal tem
além-fronteiras uma nova Figura. Quatro décadas depois daquela tarde histórica
e célebre em que se tinha ouvido tilintar na arena uma moedinha de uma peseta
se ela por acaso lá tivesse caído. Houve silêncio outra vez. E houve Moura
também. Outra vez.
Fotos Ricardo Relvas