sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Moura/Telles ontem em Lisboa: ninguém "comeu" ninguém...

João Moura Jr. teve rasgos de genialidade nos momentos de brega e nos recortes
e foi no seu último toiro que provocou uma verdadeira explosão nas bancadas ao
cravar um comprido enorme de praça a praça, consentido barbaridades
Momentos das actuações de João Ribeiro Telles ontem no Campo Pequeno,
sobressaindo em ferros de muita emoção e a entrar pelos toiros dentro, em
terrenos de muita verdade



Miguel Alvarenga - Embora o mano-a-mano tenha acontecido na hora e no local exactos, a verdade é que o público aficionado não correspondeu como se previa - e mais que isso, se exigia - ocupando apenas dois terços das bancadas do Campo Pequeno para assistir ontem à noite ao duelo entre João Moura Júnior e João Ribeiro Telles, sem margem para dúvidas, os dois cavaleiros mais destacados nesta temporada de 2015.
Em termos de público e de aficion (que é feito dela, que é feito do entusiasmo que outrora acelerou paixões e dividiu falanges em torno das competições Núncio/Simão, Batista/Veiga e outras? Ou mesmo Moura/Telles, quando protagonizada pelos Pais dos dois jovens cavaleiros?), perdeu-se uma oportunidade enorme e, talvez mesmo, única, de dar um outro ânimo aos toureiros (uma praça esgotada ou cheia incentiva muito mais um artista) e proporcionar uma noite muito mais redonda e apoteótica do que aquela a que assistimos. Este foi o primeiro desaire do mano-a-mano.
O outro foi o quase empate entre os dois toureiros. Já não há mano-a-manos como os de antigamente. O de ontem foi, em termos artísticos, meio sonso e sem a picardia que se impunha. Ninguém comeu ninguém, não houve um vencido e um vencedor, como também é exigível e se impõe num duelo deste tipo entre dois toureiros que discutem entre si, ou deveriam discutir, a supremacia. Moura não pregou um banho a Telles e Telles também não pregou um banho a Moura. Andaram ela por ela. Houve momentos em que Moura reafirmou clara e determinantemente a incontestável liderança desta temporada e momentos em que Telles a ameaçou muito seriamente.

Só "arrearam" nos últimos toiros...

Faltou aos dois a raça, a garra e o espírito de vencer dos toureiros de antigamente, dos mano-a-manos de outras eras (e foram tantos... e tão bons). Só mesmo nos últimos toiros de cada um se empenharam mais a fundo, estilo como quem afirma: "afinal estamos aqui e viemos para guerrear". O que Moura fez no quinto da ordem, esperando-o sózinho no centro da arena numa emotiva sorte de gaiola; e o que Telles fez no sexto, também indo buscar o toiro à porta dos currais... deveriam tê-lo feito logo nos primeiros toiros. Deveriam ter dado, logo a abrir, o mote da competição que afinal, só se acabou por sentir nas últimas lides de cada um. Faltou-lhes qualquer coisa para que a noite, o duelo, o confronto, a competição tivesse tido o sabor e a emoção que, nas primeiras quatro lides, não se chegou a sentir, parecia uma corrida vulgar, depois de se ter feito um alarido tão grande e tão bem promocionado em torno de um mano-a-mano que, na verdade, era por muitos esperado.
E quando tudo acabou, atravessaram juntos à arena no final (foto ao lado) e foram calorosamente aplaudidos pelo público, assim como quem diz estiveram os dois benzinho, mas não houve um que se destacasse mais que o outro.
João Moura Júnior leva, de longe, a dianteira do pelotão nesta temporada de 2015. Desde a primeira actuação (no festival de Vila Viçosa) tem vindo a arrear forte em todas as praças e ninguém tem dúvidas (ou tem?) de que é, até ao momento, o cavaleiro mais "à frente" desta época. João Telles teve um início meio irregular e só nas últimas corridas veio por aí acima, em força, tornando-se mais ou menos uma ameaça à liderança de Moura, mas ainda não foi desta que o destronou.
Uma coisa é certa e ontem foi claramente reafirmada: apesar dos importantes triunfos que outros cavaleiros têm tido, Moura e Telles são, até pelos palcos que têm pisado e ontem têm triunfado, os dois mais destacados da temporada de 2015. E constituem, sem dúvida alguma, a parelha que pode voltar a suscitar entre os aficionados a paixão que Núncio e Simão, Batista e Veiga provocaram, a seu tempo, na tauromaquia nacional.
São dois toureiros de estilos distintos e que se completam. Em Moura sobressai acima de tudo a arte e o temple, a brega, a forma como mexe com os toiros, fazendo o difícil parecer fácil; em Telles destaca-se a classe, a arte, a veia artística de um toureiro de bom gosto e de toureio ousado.
Moura pôs ontem o público em alvoroço muoto mais quando ladeou, quando interptetou a "hermosina" a milímetros do toiro, causando emoção e grande impacto nas bancadas. É o toureio mourista, o temple e a raça que trazem a marca da casa.
Telles teve os melhores momentos a cravar, destacando-se em diversos ferros, nas três lides, de parar corações e arrepiar, pela forma como esperou, consentiu e depois entrou pelos toiros dentro.

Triunfo dos ganadeiros

Há que aplaudir os dois toiros de cada ganadaria que ontem sairam à arena do Campo Pequeno - de Pinto Barreiros, de Murteira Grave e de António Charrua - que, a meu ver, mereciam, pelo excelente comportamento e pela seriedade que impuseram, no final a chamada à arena dos três ganadeiros. Foi outra falha que é preciso lamentar.
João Moura abriu praça com um fantástico toiro de Charrua, que investiu de todos os lados com alegria e emoção e só foi pena que o público e o próprio toureiro estivessem ainda algo frios para que dali tivesse saído uma lide redonda. Mesmo assim, Moura empolgou com a forma como bregou, como se recortou e como cravou.
O seu segundo toiro (terceiro da noite) era de Murteira Grave e foi um toiro muito sério, mas mansote e, por isso, complicado e sem facilitar. Reservado, esperava e acudia ao chamamento do cavaleiro com más intenções, para "comer tudo". Foi o toiro mais difícil da noite e com ele Moura pôde dar conta da sua maestria, da sua maturidade toureira e da grande forma em que se encontra, ele e os seus cavalos. Foi uma lide esforçada, de imenso valor e de muito empenho para dar a volta a um toiro que não era, nem de perto, nem de longe, muito pelo contrário, uma pêra doce.
O último que enfrentou, o quinto, era de Pinto Barreiros e proporcionou a Moura uma actuação genial, apenas manchada por duas ou três passagens em falso e pelo falhanço incrível do primeiro curto. Recebeu-o Moura com uma arrojada sorte de gaiola (que não é seu costume e executava, salvo erro, apenas pela segunda vez, fê-lo ali há uns anos no mano-a-mano com Ventura) a demonstrar afirmação e querer. O segundo ferro comprido, de praça a praça, a consentir barbaridades, foi um verdadeiro assombro e causou a primeira grande explosão da noite nas bancadas. Terminou com palmitos, a primeira série em sortes de "violino", que causaram verdadeira apoteose na praça e fizeram terminar em beleza e em grande a sua participação na corrida de ontem.
Aliás, repito, foi nos seus últimos toiros - quinto e sexto, respectivamente - que Moura e Telles mais deram tudo por tudo, mais se empenharam e mais arriscaram, estilo "agora é que vão ser elas", depois de nos primeiros terem apenas andado bem, muito bem mesmo em algumas ocasiões, mas sem romperem em definitivo.
Foi no último da noite, um Murteira Grave de grande qualidade e sério comportamento, que João Telles pôs a carne toda no assador, sofrendo mesmo um forte encontrão e falhando a seguir um ferro, certamente por nervosismo causado pelo violento toque. Mas recompôs-se e terminou em grande com um "violino" de adorno, a culminar uma actuação com ferros de grande valor e redobrada emoção.
O primeiro de Telles (segundo da noite) era um toiro de Pinto Barreiros, que deu também excelente jogo e que o cavaleiro aproveitou da melhor forma, com grandes pormenores de brega e emocionantes ferros, sobretudo os curtos, vencendo o piton contrário e causando enorme impacto e muitos suspiros nas bancadas. Foram ferros de parar a respiração pela verdade e pela ousadia do jovem cavaleiro.
O seu segundo toiro (quarto da ordem) foi outro excelente exemplar da ganadaria Charrua, sem contudo transmitir muito, mas que proporcinou a João Telles mais uma empenhada actuação, voltando a marcar terreno na ferragem curta em sortes de grande emoção.

Duelo aquém do que se esperava...

No contexto final, espremendo todo o sumo das seis actuações, não seria justo proclamar um triunfador absoluto, um que tivesse superiorizado o outro. O duelo foi aguerrido, mas acabou por deixar tudo como estava: João Moura Júnior permaneceu, pela trajectória que vem desenhando desde o primeiro festejo em que participou este ano, como líder incontestado da presente temporada; enquanto João Telles se consagrou/reafirmou como um toureiro em plena fase de afirmação, sem andar para trás, antes pelo contrário, de regresso aos grandes triunfos que alcançou em 2013 e depois não repetiu em 2014. É, sem dúvidas, a maior e mais séria ameaça ao trono onde se sentou Moura e ambos formam, também sem quaiquer dúvidas, a parelha de grandes triunfadores da actualidade. O mano-a-mano serviu para confirmar tudo isso - mas em termos de "guerra", ficou algo aquém do que se esperava, do que se impunha e das expectativas geradas pela fasquia bem alta em que este confronto tinha sido posto pela brilhante campanha de marketing que se desencadeou nos dias que antecederam a corrida.
Uma palavra de destaque para as intervenções dos seis bandarilheiros em praça, pelo elevado profissionalismo que demonstraram: Diogo Malafaia, Jorge Alegrias e Benito Moura, João Curto, Nuno Oliveira e Duarte Alegrete.
Resumindo e concluindo, afinal quem manda aqui? Continua a mandar Moura, mas Telles ameaça seriamente, poder vir a destroná-lo nos próximos confrontos (penso que não haverá mais nenhum este ano e é pena que não se dê mais continuidade à competição desta dupla, porque é destas "picardias" e destas rivalidades que renascem as paixões e as grandes emoções nas arenas). Um e outro estão em grande momento. Um e outro são grandes Toureiros e dignos seguidores da história que seus Pais escreveram por aqui, nas nossas praças e no nosso país.
E foi assim a nocturna de ontem no Campo Pequeno, uma corrida bem dirigida, com aficion, competência e rigor por Pedro Reinhardt, que teve ritmo e momentos empolgantes e da qual o público saíu satisfeito - embora se esperasse qualquer coisa mais. Para ser uma noite redonda, teriam que ter saído os dois em ombros, ou um que fosse, pelo menos para se poder dizer e escrever que tinha havido um claro vencedor, um triunfador. Mas a verdade é que não houve. Houve dois. E tudo ficou, afinal, como estava...

Nota - Do êxito e do também grande confronto entre os dois grupos de forcados - Santarém e Montemor - já aqui se disse tudo anteriormente (ver foto-reportagem publicada há momentos, com o filme das seis pegas), pelo que se torna desnecessário repetir.

Fotos Emílio de Jesus/fotojornalistaemilio@gmail.com e Maria João Mil-Homens