sexta-feira, 20 de maio de 2016

O eterno: Campo Pequeno fez 10 anos e Moura rendeu-lhe a maior das homenagens

A verdade do toureio mourista marcou ontem a corrida comemorativa do
10º aniversário da reinauguração do Campo Pequeno. João Moura, o eterno!
Que bem e com que classe toureou António Telles!
Rui Fernandes: se isto não é arriscar, então o que é arriscar?
O pino do quarto toiro, rodando sobre o forcado Manuel Guerreiro (Lisboa)
O maioral da ganadaria Vinhas deu volta à arena nos quinto e sexto toiros,
o que só por si diz do notável triunfo dos toiros do Zambujal ontem em Lisboa


Miguel Alvarenga - Faltou a enchente de há dez anos, sobrou emoção e valor a toureiros e forcados diante de um aplaudido curro de toiros da ganadaria Vinhas, tendo o maioral dado volta à arena nos dois últimos (fotos ao lado e em cima). Ontem, em ambiente de festa e com muitos políticos convidados (deputados e autarcas das cidades taurinas), a praça de toiros do Campo Pequeno comemorou o 10º aniversário da sua reinauguração. Há uma década faltou um minuto de silêncio em memória do apoderado Fernando Camacho, que morrera na manhã desse dia de reabertura, ontem esqueceram-se de homenagear a memória de um jovem toureiro que morreu esta semana vítima de cornada em praça, o novilheiro peruano Renatto Motta. Esqueceram-se também, e isso já é mais imperdoável, de um brinde, um só que fosse, a Goes Ferreira e a Henrique Borges, que assistiam à corrida em lugares bem visíveis (barreiras) e mesmo assim, que memória tão curta a dos homens dos toiros, não houve um dos três cavaleiros ou um dos seis forcados que pegaram que tivesse a lembrança de num brinde lhes agradecer o que eles e a sua gente (entenda-se, os restantes antigos sócios da empresa) fizeram pelo Campo Pequeno (a magnífica obra) e pela Festa - haveria ainda touradas nesta cantinho à beira-mar plantado se a emblemática praça lisboeta não tivesse sido requalificada, arranjada, modernizada, se em vez disso tivesse caído aos poucos, como ameaçava cair antes deles arrancarem com as obras, com o projecto? Eu acho que não. Por isso, daqui lhes brindo, sem ser toureiro, cronista apenas, mas que sirva como exemplo aos que não mais se lembraram daqueles dois homens a quem devemos o novo Campo Pequeno que ontem ali se comemorava.
Muito bem esteve António Ribeiro Telles, soberbo no seu primeiro toiro, enorme no quinto da noite com o magnífico cavalo "Alcochete" e com aquela arte e aquela classe que são só dele e nos ensinam, por mais que pensemos que já sabemos, que assim é que se toureia e assim é que se cumprem os tempos da lide, que assim é que se cravam os ferros como os antigos os cravavam e faziam gala em nos lembrar que tourear a cavalo também é beleza, também é poesia e também é o arrojo, a graça, a verdade com que o António esteve ontem em praça. Assim se toureia.
Rui Fernandes pôs a carne no assador, fez das tripas coração e rubricou no complicado e reservado terceiro Vinhas da noite uma lide com princípio, meio e fim, bem reveladora do momento alto que vive e da maturidade que atingiu como toureiro e lidador - dos de cima. No último, o melhor toiro da corrida, Rui quis fazer tudo e nem sempre a sorte protegeu a audácia. Era evitável o confronto com o director de corrida, mas Tiago Tavares teve alguma culpa no cartório, ao tardar a mandar tocar a banda (a fantástica banda do Samouco). Rui não tinha que responder com aquele gesto feio - por muita razão que tivesse. Bastaria ter respondido, como depois o fez, com aquela raça, aquela garra, aquela vontade de querer e de ser diferente, aquele ousado par de bandarilhas com que fechou uma actuação que não foi brilhante, nem deixou de o ser. Foi polémica. Mas também foi verdadeira. Porque a verdade é a arma principal do toureio do valente Rui Fernandes.
E João Moura? Ficou para o fim apenas e só porque ontem foi o primeiro. Duas actuações que fizeram lembrar os tempos áureos do "niño prodígio" e que consagraram, sem que fosse preciso, o génio, o Mestre, o número-um, a perfeição, o tratar os toiros por tu e o sair sempre por cima, mesmo quando os ventos, por esta ou aquela razão, sopraram em sentido contrário. João Moura está de novo muito bem montado, tem as "ferramentas" necessárias para refazer toda uma obra, está outra vez em grande e quando isso acontece não há nada nem ninguém que lhe passe à frente, que "lhe faça a folha", porque a folha, as folhas, o livro de uma glória, continua ele a escrevê-las com uma insuperável maestria, um saber único, a raça com que se supera a si próprio e com que inova, e como inova, e como toureou ontem, meu Deus, que coisa distinta, única mesmo, inimitável, Moura há só um, os tempos passam e as modas mudam, mas ele fica e permanece e continua e o resto serão sempre cantigas. De embalar.
Da actuação dos valentes forcados de Santarém e de Lisboa, há a registar que a coisa só não esteve fácil precisamente para os dois cabos. Diogo Sepúlveda despediu-se do público lisboeta com uma pega complicada e à quarta. E Pedro Maria Gomes também não teve a vida facilitada, fechando-se só à quarta também. A partir daí, as coisas compuseram-se e as restantes intervenções dos forcados dos dois grupos foram rijas, aplaudidas e muito boas, mesmo. Por Santarém, um pegão do enorme Lourenço Ribeiro e outro muito bom do experiente João Brito. Por Lisboa, o garbo e a técnica de Manuel Guerreiro, sem mais sair da cara do toiro, mesmo quando este fez o pino e rodou sobre o seu corpo, assim como uma máquina que passa alguma coisa a ferro, mas valente esteve o forcado e não se passou nada... a não ser uma grande pega. Fechou praça outro valoroso forcado, Pedro Gil, com a técnica e a perfeição costumeiras.
Nota alta para os toiros da ganadaria Vinhas, que há dez anos reinaugurou o Campo Pequeno e ontem  voltou a proporcionar um grande e emotivo espectáculo onde não houve tempos mortos nem nada daquelas coisas que às vezes chateiam tudo e todos. Toiros que transmitiram, que tiveram um digo comportamento e um peso qb, nada de monstruosidade, o toiro na verdadeira dimensão, sem exageros. Com comportamentos notáveis.
Houve um discurso, curto e eloquente, justo e oportuno, de Rui Bento, antes do início da corrida. Com a precisão de quem sabe e não perde tempo, lembrou a glória de dez anos que mudaram a tauromaquia nacional e honrou quem esteve e quem está agora na dianteira da nau, a remar para o barco chegue sempre a bom porto.
Em noite de festa e com a praça recheada de políticos a dar a cara pela Festa (louvável), houve ainda brindes para Mestre Luis Miguel da Veiga, o primeiro cavaleiro que há dez anos toureou na nova arena do renovado Campo Pequeno no espectáculo de Filipe la Féria que antecedeu em 48 horas a primeira grande corrida, essa que ontem se lembrou e se assinalou e a que João Moura prestou a maior das homenagens, marcando a diferença, dando o mote para uma temporada que, a atestar pelo que ontem mostrou, não vai ser fácil para os outros todos. O "niño prodígio" voltou em força e agora que se cuidem os demais - que não vai ser fácil, alguma vez, tourear-se melhor, estar-se melhor do que esteve ontem Moura. O eterno.

Fotos Emílio de Jesus/fotojornalistaemilio@gmail.com