sábado, 1 de julho de 2017

Évora, praça esgotada e o tempo voltou pr'a trás!

Lágrimas e emoção no momento da despedida: António Alfacinha passou ontem
o testemunho a João Pedro Oliveira, novo cabo dos Forcados de Évora, numa
noite de grande triunfo para o fantástico grupo
O tempo voltou pr'a trás, Moura parecia ontme que tinha outra vez 16 anos,
que estávamos em Las Ventas, que montava o "Ferrolho", que o mundo ia
ficar outra vez todo a falar dele. E ficou! Um assombro
Com o toureio de arte e temple e com os cavalos mágicos de Pablo Hermoso,
o difícil até parece a coisa mais fácil do mundo!
Apoteose dos monstros sagrados não intimidou João Telles, antes pelo contrário,
motivou-o. Agigantou-se e acabou com o quadro!


Miguel Alvarenga - A praça de toiros de Évora esgotou ontem a lotação, pela segunda vez em dois anos e de novo por obra e graça de Pablo Hermoso de Mendoza, indiscutivelmente o número um do rejoneio mundial e aquele que desfruta de maior carinho e popularidade entre a aficion portuguesa.
Os toiros da ganadaria Passanha, de irrepreensível apresentação e de comportamento desigual, mas na generalidade a investir com nobreza e clareza, proporcionaram um espectáculo de altíssimo nível e foi por isso mais que justificada a volta à arena de Diogo Passanha deu no quarto da ordem.
Até ao momento, esta foi, não tenho a menor dúvida, a grande Corrida do Ano - o empresário "Nené" acertou quando assim a classificou nas redes sociais.

O tempo andou para trás...

Praça esgotada, um ambientazo sem lugar para historietas de encantar, três grande cavaleiros em praça, noite marcada pela apoteose dos três, mas sobretudo pela garra, a raça, o valor e a maestria eterna, eterna mesma, do grande João Moura, que muitos julgavam estar arrumado e afinal, Deus meu, ressuscitou ontem, parecia ele que tinha outra vez 16 anos, que montava o "Ferrolho" e que estávamos em Las Ventas, Madrid de pé, o rei e todos, em loucura com o menino prodígio que ensinava e ditava ali, naquele momento histórico, as novas e decisivas regras de como se haveria de passar a abordar os toiros e a interpretar a arte nobre e ancestral do toureio a cavalo, agora modificada e moldada à maneira como ele ensinava e queria e ficaria para sempre.
Ontem em Évora houve corações a bater mais forte, lágrimas ao canto dos olhos, alegria, euforia, reconhecimento, acima de tudo. Moura é Moura e há-de ser Moura até ao fim. E o resto continuarão a ser sempre cantigas.
Ontem foi diferente, João Moura precisava disto: ia para casa, diziam os profetas da desgraça, deixava de tourear, emagrecia, deixava o legado aos filhos, que são bons e estão a marcar a diferença, tudo porque caira do cavalo na abertura da temporada em Lisboa e os Mestres não devem cair dos cavalos nem devem ser gordos. Tretas, meus senhores. Assim ou assado, João Moura será sempre João Moura e será sempre o primeiro. É assim há quarenta anos, chegaram tantos e viu-se tanta coisa e jamais alguém o conseguiu destronar. Trata os toiros por tu e não há mesmo mais nada a dizer.
A primeira lide foi de raça, de casta, de entrega e viu-se logo que o João não vinha ali permitir que lhe pisassem os calos, mais a mais numa noite em que competia com Hermoso e o jovem Telles.
A segunda foi um verdadeiro assombro e decorreu em ritmo de total apoteose, público de pé, explosões na bancada, Moura na arena a mandar, a citar de praça a praça, a provocar, a parar numa fracção de segundos, a aguentar a investida e a cravar ali, de frente, a vencer o piton esquerdo, quase sem saída, em terrenos de valor e compromisso, os terrenos que põem os toureiros ricos e fizeram dele, em quarenta anos, o número um desta coisa toda. Enorme. Único. Lide magistral e para a História. Moura sempre!

O difícil-fácil de Pablo Hermoso

Pablo Hermoso de Mendoza é, doa a quem doer e por mais que queiram colocar o ceptro noutras mãos, o toureiro com maior força de bilheteira em Portugal e o rejoneador espanhol mais respeitado, mais acarinhado e mais querido pelo nosso público. Numa coisa, sobretudo, marca claramente a diferença: tem nível e tem classe. Para lá de ser um exímio equitador e um toureiro de uma outra galáxia. Que faz a diferença com a distinção dos eleitos, quase a humildade que molda a grandeza dos homens e sem espalhafato pr'á populaça bater palmas. Toureia a sério.
Os cavalos são únicos, ele é único e na arena o difícil fica tão fácil que até parece que todos somos capazes de fazer aquilo. Fantástico.
O primeiro Passanha que enfrentou era nobre e codicioso, serviu às mil maravilhas para o toureio de arte e pausado temple com que Pablo Hermoso fez escola. Com ele, o rejoneador navarro bordou o toureio e levou o público ao rubro com os seus cavalos mágicos e a sinfonia de uma faena que deixou sabor.
O seu segundo foi um toiro mais reservado e que procurou refugiar-se em tábuas, para o qual Pablo teve todos os argumentos e mais alguns. Se faltou ali toiro, sobrou toureiro e houve espectáculo. Mais uma lide de sonho onde o complicado voltou a parecer a coisa mais simples do mundo. Outra sinfonia de beleza e arte, público de pé a pedir mais e mais. Enorme. Único, também, no seu estilo tão próprio e tão avassalador.

João Telles gritou e disse: Estou aqui!

Mas não pensem que a apoteose, sei lá se foi apoteose, foi mesmo muito mais que isso, há muito tempo que não se via uma corrida tão boa, tão completa, sem nada a apontar, nada mesmo, não pensem dizia, que a apoteose dos dois monstros sagrados apagou, assustou e de algum modo ofuscou a estrela do jovem Telles. Nada disso. Antes pelo contrário. Ontem o Joãozinho fez-se grande, agigantou-se lado a lado com os Maestros, chegou, gritou, proclamou-se grande e disse, bem alto, para que todos ouvissem e registassem: meus senhores, estou aqui! E esteve mesmo. E esteve com que classe, com que certeza, com que pundonor, com que brio.
Protagonizou, frente também e dois belíssimos exemplares da ganadaria dos êxitos, duas actuações verdadeiramente assombrosas, onde impôs a sua arte com uma solidez, uma atitude e uma afirmação que não deixam dúvidas. João Ribeiro Telles é igual ao seu pai, que dos Ribeiro Telles foi sempre o menos clássico, aquele que se inspirava e quando se inspirava de verdade punha as gentes em delírio, espécie de Curro Romero do toureio equestre, como tão bem o classificava o meu querido e saudoso amigo Bacatum, que era homem que sabia de mais e só dizia coisas que eram verdade.
Seguro de si, bem montado, crescendo em praça de ferro em ferro, João Telles pôs o público de pé, como o tinham posto Moura e Pablo. Brega vistosa e de quem sabe, terrenos bem medidos, cites emotivos e ferros en su sítio em sortes de parar corações. Foi uma noite de consagração num cenário que não era fácil, mas que João superou, sem se intimidar, sem gaguejar sequer, crecendo, impondo-se, explicando que não é por acaso que pede os cachet's que pede e por isso fica na maior parte das vezes em casa e tem toureado tão pouco. Os toureiros precisam de valorizar-se, acabar com esta humilhante moda de tourear pelo preço da chuva só por tourear. O toureio é uma arte digna, é grandeza. João Telles está a marcar a sua carreira por essa afirmação. Era preciso alguém fazê-lo.
Não faz sentido e não sei, de verdade, se é isso que o mantém parado, pedir um cachet igual ao de Pablo ou de Moura, cada galo em seu poleiro, mas acredito que João Telles vale muito mais do que o dinheiro que lhe oferecem e é, se calhar, por isso que tem toureado tão pouco. Ontem, ele mostrou claramente que não toureia pouco por não ser bom, é fantástico e está num momento altíssimo. E se andamos fartos de ver sempre mais do mesmo, os senhores empresários que se cuidem, se não um dia isto acaba num instante. João Telles faz falta nas grandes corridas.

Noite histórica para Forcados de Évora

Foi histórica a noite, era histórica à partida, para os Forcados Amadores de Évora, que ontem mudavam de cabo. Saíu António Alfacinha com uma pega brilhante ao segundo toiro da noite, um Forcado que marcou e que foi dos maiores da sua geração. Entrou João Pedro Oliveira, outro grande Forcado, que pegou também com eficácia e bonita técnica, o terceiro toiro da corrida, depois de brindar aos três cabos que estavam fardados, a seu pai, João P. Oliveira, a João Pedro Rosado e a António Alfacinha.
Fardaram-se antigos forcados - que pegaram o último toiro - lado a lado com os actuais, a noite foi de emoção constante e foi, sobretudo, de grande êxito para o grupo.
Além do cabo que se despediu e do novo que o rendeu, pegaram João Madeira, brilhante como sempre, à primeira; Gonçalo Pires, outro grande forcado, à segunda, mas também com uma pega empolgante; o grande Manuel Rovisco, numa pega de parar corações onde tudo foi perfeito; e, por fim, vieram os veteranos, foi uma espécie de regresso dos heróis, pegou à segunda, com que garbo e com que raça, Francisco Tadeu Garcia, muito bem ajudado pela rapaziada do seu tempo.
Ao intervalo foi descerrado no páteo de quadrilhas o cartaz histórico desta histórica corrida, em acrílico, depois de Manuel Calejo Pires ter dedicado bonitas palavras a Alfacinha na hora da despedida (que mais logo aqui vamos reproduzir numa mais ampla reportagem deste momento de homenagem ao antigo cabo). Daqui a pouco, também, vamos prestar homenagem ao Grupo de Évora, publicando uma magnífica foto-reportagem de Maria João Mil-Homens com a sequência das seis magníficas pegas de ontem à noite.
Destaque, por que absolutamente merecido, para os brilhantes peões de brega que ontem actuaram em Évora: Benito Moura e Marco Sabino com João Moura; José Franco "Grenho" e José Manuel Fácila com Pablo Hermoso; Nuno Oliveira e Duarte Alegrete com João Telles. Ouro para os Toureiros de Prata!
A corrida foi dirigida com aficion por Agostinho Borges, assessorado pela médica veterinária Drª Ana Gomes.
É tudo, de uma noite empolgante e única, uma corrida daquelas que se não esquecem tão cedo. Moura (o tempo voltou mesmo pr'a trás, trouxe tudo o que eu perdi, como dizia a canção) e Pablo são toureiros de uma outra galáxia. João Telles é um dos maiores da nova geração. Os Forcados de Évora viveram uma noite que vão guardar para sempre e o tempo nunca vai apagar. A ganadaria Passanha teve mais um triunfo grande. "Nené" é o número um dos empresários tauromáquicos portugueses. A praça esgotou. O público viveu momentos únicos. Foi mesmo a Corrida do Ano. Sei que o ano está a começar, mas sei também que não vai ser fácil voltar a ver uma corrida assim.
E são corridas, são toureiros, são forcados e são toiros como estes que mantêm de pé e em alta esta Festa que é tão nossa e que tantos (dos nossos, sobretudo dos nossos) tão pouco, às vezes, sabem engrandecer e defender.
O resto são cantigas...

Fotos Maria Mil-Homens