sábado, 16 de setembro de 2017

Ele passou pela vida a correr, mas deixou atrás de si um rasto de luz inapagável



Miguel Alvarenga - Podia e devia, meu querido João Quintella, dizer-te tanta coisa, mas o que se pode dizer a um Pai que acaba de perder o seu filho querido? Não tem lógica, não faz sentido nenhum, um Filho partir antes de um Pai, antes de uma Mãe. Queria escrever aqui tanta coisa para ti, para tua Mulher, a João, que apesar de sermos amigos há tantos anos, só conheci há três naquele jantar (lembras-te?) em Alcochete, à mesa do nosso amigo António José Pinto, mas não consigo. Não consigo mesmo, João.
Admirava muito o Fernando. A sua postura discreta, a sua elegância a pegar, a garra e a arte com que citava os toiros, o garbo com que os toureava recuando, a decisão com que sempre pegava e fazia pegas enormes e depois agradecia na volta à arena com uma simplicidade que era de uma tremenda grandeza, como se não tivesse feito nada de especial, como se aquilo de bater as palmas a um toiro e o abraçar de igual para igual fosse a coisa mais simples deste mundo e do outro.
Faço tantas interrogações a mim mesmo depois do que aconteceu ontem na Moita, João. Se vale a pena ser Forcado, se servirá para alguma coisa morrer assim tão estupidamente, sem nenhuma razão de ser para lá do orgulho, do brio, da nobreza dos que vestem uma jaqueta de ramagens e arriscam assim a vida sem mais nem quê, a troco de mesmo absolutamente mais nada que não seja uma flor, um sorriso, um público todo de pé a bater palmas.
Mas eles, os Forcados, são assim e não há nada a fazer. Cumprem uma tradição, uma tradição secular e de alto risco, uma tradição que o teu (o nosso) Fernando tão bem soube honrar durante nove gloriosos anos, desde que em 2008 se estreou na praça francesa de Mont de Marsan, passando a dedicar a sua vida, a par da sua profissão de agrónomo, ao seu Grupo de Forcados Amadores de Alcochete - que ele tanto amava como se ama uma Mulher e a que tanto se dedicava com um empenho e uma arte que só são apanágios de Homens muito especiais, se calhar únicos.
O Fernando era único e era um Grande Forcado. Um Grande Filho e também um Grande Amigo, eu sei, meu querido João.
Sei também que não há palavras de consolação possível num momento tão duro e tão triste como este. Queria e não consigo dizer-te tanta coisa mais, João. Se calhar, em nome da nossa tão antiga Amizade, cimentada pelo nosso comum amigo Tomás Alarcão desde os nossos 17, 18 anos, vivida em tantos copos, em tantos fados, em tantas garraiadas desses tempos outros. Se calhar, em nome de Pai que também sou e por isso talvez consiga sentir e entender a dor que neste momento te vai na alma. Não tem mesmo lógica nenhuma um Filho morrer antes dos Pais.
Abraço-te, João. A ti e a tua Mulher, a teus filhos, ao Joaquim, que também honra a jaqueta dos Amadores de Alcochete. Abraço-vos mas sinto-me impotente, revoltado, indignado mesmo, sei lá se devo estar assim ou não, mas estou, pela morte do Fernando, que ainda me custa aceitar, que me custará sempre aceitar. Não se aceita uma morte. Muito menos a morte de um jovem de apenas 26 anos, com tanto ainda para viver.
O Fernando foi um rapaz daqueles que passou a correr pela vida, mas que deixou atrás de si um rasto de luz, de alegria e de vida que é inapagável. Morre só quem é esquecido. E por isso o Fernando não pode morrer nunca. Nunca mesmo, João.
A vocês, meus queridos Amigos do meu tão admirado Grupo de Forcados Amadores de Alcochete, não quero citar nomes, mas não posso deixar de abraçar o “Nené”, o João Pedro Bolota, o António José Pinto, o Vasco Pinto, o Nuno Santana, todos, deixo o meu mais forte abraço.
Descansa em paz, Fernando. Que Deus te receba no seu reino, que não sei se existe, mas quero acreditar que sim. Falta-me a Fé em momentos destes. Sei que és um Homem de Fé, João e que isso te vai, vos vai, ajudar, num momento destes. Gostava de também a ter, hei-de procurá-la e talvez a encontre um dia.
Quero abraçar-te, João, dizer-te num olhar, numa lágrima que seja, tudo aquilo que não te consegui dizer agora aqui.

Fotos D.R.