quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Ilha Terceira: crónica de um dilúvio anunciado...

São Pedro não colaborou e a corrida, adiada de segunda-feira para terça,
decorreu a partir do terceiro toiro debaixo de um forte dilúvio
A classe e a arte de António Ribeiro Telles num momento espectacular da sua
primeira e triunfal actuação na corrida de terça-feira em Angra, frente a um
grande e bravo toiro de Rego Botelho
Tinha esta apresentação e este trapio o primeiro toiro da tarde, o melhor da
corrida, da ganadaria terceirense Rego Botelho
Momento alto da corrida: a pega monumental do grande José Tomás, cabo
dos Amadores de Coruche, ao primeiro toiro da tarde, um grande toiro de
Rego Botelho - que justificava em pleno a chamada do ganadero à praça
Segundo toiro, um bom exemplar da ganadaria Ribeiro Telles. João Telles esteve
brilhante a todos os títulos numa lide que galvanizou o público
A chuva começou a cair ao terceiro toiro e o exemplar de João Gaspar também
pouco colaborou. Valeu o empenho e o profissionalismo do jovem cavaleiro
terceirense João Pamplona, toureiro de valor
O quarto toiro, de João Gaspar, era manso e fechou-se em tábuas. Com a
maestria e a arte costumeiras, António Telles toureou-o a sesgo e pôs cinco
arriscados ferros que levantaram a praça
Actuação empolgante e já debaixo de chuva de João Telles no quinto e último
toiro da corrida, de excelente nota, da ganadaria Rego Botelho


O público terceirense é fantástico. E exemplar. Único, mesmo. Só assim se justifica que tivesse permanecido nas bancadas até ao fim, depois de ao terceiro toiro ter caído um verdadeiro dilúvio que obrigou a suspender, na terça-feira, ao sexto toiro, a azarada corrida das Festas da Praia na Monumental de Angra do Heroísmo. Triunfo grande dos Telles, António e João, confirmação do valor de João Pamplona e, no campo das pegas, uma colossal de José Tomás, cabo dos Amadores de Coruche. Toiros de três ganadarias, de apresentação e comportamento desigual, destaque para os dois de Rego Botelho

Miguel Alvarenga - Mau tempo no canal, como escreveu Vitorino Nemésio. Mau tempo, mesmo. Azar. Depois de uns dias lindos de sol, São Pedro amaldiçoou este ano a tradicional corrida das Festas da Praia da Vitória, cidade onde se espera que um dia venha a existir também uma praça de toiros (coberta, segundo o projecto que existe, mas por enquanto está em "banho maria") e que, por agora, se vai realizando todos os anos, nos primeiros dias de Agosto, na bonita Monumental de Angra do Heroísmo, na "minha" Ilha Terceira. A Terra dos Bravos.
Inicialmente agendada para a tarde de segunda-feira, a corrida acabou por se realizar na terça, devido às chuvas torrenciais que se fizeram sentir na ilha.
O dia de terça-feira amanheceu cinzento, depois de ter chovido - e de que maneira! - a noite toda. À hora do almoço o tempo melhorou e durante a tarde não choveu. Bom augúrio que justificou o grande ambiente que, como é usual naquelas paragens, se foi vivendo em torno da Monumental e na sede da Tertúlia Tauromáquica Terceirense nas horas que antecederam o início da corrida. Mas depois...
Depois o céu foi escurecendo, as primeiras pingas de água fizeram-se sentir no final da lide do segundo toiro e a chuva voltou em força a partir do terceiro, não mais parando. Quando João Pamplona entrou em praça para lidar o sexto e último toiro, da ganadaria Ribeiro Telles, as condições já eram completamente impróprias para a sua actuação. Chovia que Deus a dava e o piso estava verdadeiramente impróprio e perigosíssimo. O jovem cavaleiro terceirense ainda o experimentou, sendo manifestamente visível que o cavalo escorregava a todo o momento. Mesmo assim, predispôs-se a arriscar e o director de corrida Rogério Silva, com  a concordância do médico veterinário José Pedro Lima, deu ordens para que o toiro saísse. O que não se deveria ter verificado.
O exemplar de Ribeiro Telles saíu "com pata", Pamplona sofreu dois fortíssimos "apertos" contra as tábuas, todo o mundo teve a consciência de que a lide era impossível com aquele piso e aquelas condições, os bandarilheiros do cavaleiro açoreano "perderam os papéis" e teve que ser o continental Duarte Alegrete, que num gesto de camaradagem e grande profissionalismo saltou à praça, a pôr ordem onde não a havia. O público respirou de alívio, tudo acalmou e o director de corrida tomou finalmente a decisão que deveria ter assumido antes de o toiro sair: deu por suspensa a corrida. O público, esse - três quartos da lotação preenchidos -. não arredou pé das bancadas até ao último segundo. Que aficion! Saímos da praça com as camisas coladas ao corpo, os cabelos encharcados e imediatamente directos a um duche quente, não fosse o Diabo tecê-las. Um dilúvio autêntico. Enfim, a crónica de um temporal anunciado...
Da corrida, dos momentos que foram possíveis, ficaram duas grandes actuações do Maestro António Ribeiro Telles, a primeira frente a um belíssimo e muito bem rematado toiro de Rego Botelho e a segunda com um manso de João Gaspar que se refugiou em tábuas e ao qual António deu a lide possível, cravando seis arriscados ferros a sesgo, dando-lhe a volta com a sua enorme e inigualável maestria. Para os grandes toureiros nunca houve toiros maus.
João Ribeiro Telles mostrou ao público açoreano o grande momento que vive. Apesar de ter a quadra dividida, os cavalos que levou aos Açores foram mais que suficientes para se poder avaliar a segurança e a solidez que o cavaleiro atingiu. Uma grande actuação no segundo toiro da corrida, um toiro codicioso e exigente da ganadaria da casa - Ribeiro Telles - e depois, já debaixo de chuva, uma lide emotiva e de risco a um segundo bom toiro de Rego Botelho, o quinto da tarde, com três ferros curtos em sortes a "quiebro" que pararam os corações e deixaram o público em verdadeiro delírio.
Deveria João, a meu ver, ter continuado em praça com esse magnífico cavalo e cravado mais um ou dois "quiebros" para rematar em grande um importante triunfo, mas o cavaleiro optou por mudar de montada e regressar com o cavalo dos "violinos", tendo o toiro vindo a menos. Terminou com dois ferros de palmo, que resultaram também emotivos e constituiram a chave de ouro com que fechou esta sua triunfal passagem pela Ilha Terceira.
João Pamplona é, não me canso de o repetir, um toureiro de valor. Um toureiro desenvolto, que põe a carne no assador e entusiasma pela forma ousada com que toureia e pela classe que transpira em todos os detalhes.
O único toiro que lidou, o terceiro da ordem, da ganadaria de João Gaspar, tinha pouca qualidade, era distraído e nada empenhado. Pamplona resolveu a situação com astúcia e saber, desenvolvendo uma lide ritmada e que teve bons momentos na brega e na preparação das sortes. A chuva já caía em Angra e as condições já não eram as melhores, mas o toureiro entregou-se e empregou-se, reconhecendo-lhe o público o esforço perante um toiro que não colaborava e um piso que começava a ser complicado.
Em situação difícil, pelas más condições do piso, sobretudo na hora da colocação dos toiros para os forcados, destaque-se o bom desempenho dos seis bandarilheiros: João Ribeiro "Curro" e António Telles Bastos, da quadrilha de António Telles; Duarte Alegrete e Francisco Marques, da quadrilha de João Telles; e Gonçalo Costa e Diogo Coelho, da quadrilha de João Pamplona, dois bandarilheiros terceirenses, menos rodados que os continentais, mas mesmo assim eficazes, exceptuando os momentos desorientados pela confusão espalhada pelo último toiro antes de ser, por fim, recolhido e dada por terminada a corrida.
No que às pegas diz respeito, a corrida ficou marcada por um autêntico hino à nobre e tão portuguesa arte de pegar toiros cantado pelo enorme forcado que é José Macedo Tomás, cabo dos Amadores de Coruche, ao primeiro e potente toiro da corrida, da ganadaria local de Rego Botelho.
Praça em silêncio absoluto, o forcado a caminhar serenamente em direcção do toiro, a citar com galhardia, a recuar com imenso poderio e redobrado temple, mandando na investida, toureando, fechando-se com decisão, o toiro a fugir à rota do grupo e José Tomás a aguentar sem mais sair. O grupo a ajudar muito bem e a pega a concretizar-se com arrojo e emoção ao primeiro intento. Momento alto da tarde.
O segundo toiro foi pegado também à primeira, com valor e raça, por Alexandre Vieira, do Grupo da Tertúlia Tauromáquica Terceirense, igualmente com oportunas e valentes ajudas de todos os companheiros.
Para a cara do terceiro toiro foi o jovem forcado Rui Dinis, dos Amadores do Ramo Grande, grupo organizador desta tradicional corrida das Festas da Praia (conjuntamente com a Tertúlia Tauromáquica Praiense) e que teve na sua corrida o azar de apenas executar uma pega, já que a corrida ficou suspensa ao sexto toiro. Rui Dinis não esteve bem a receber o toiro na sua primeira tentativa, na segunda já manifestou maior decisão e melhor postura, mas sofreu um violento derrote e acabou por só concretizar à terceira. No final veio à arena Filipe Lemos, veterano forcado da fundação deste grupo, para despir a jaqueta e a entregar ao cabo Manuel Pires, dizendo adeus a doze anos de uma carreira aplaudida. Deu volta à arena seguido por todo o grupo e com o público de pé a tributar-lhe uma derradeira e merecida homenagem.
Também violentamente derrotado na sua primeira tentativa, Tiago Gonçalves pegou à segunda, pelos Amadores de Coruche, o quarto toiro da corrida do dilúvio. Esteve bem a receber e a fechar-se e o grupo ajudou na perfeição, destacando-se o consagrado João Prates a rabejar.
No final da lide brilhante de João Telles, o quinto toiro, de Rego Botelho, rachou e fechou-se em tábuas, recusando-se determinantemente a investir para o forcado Luis Sousa, do Grupo da Tertúlia Terceirense, que por três vezes se viu obrigado a desfazer a sorte, acabando por pegá-lo a sesgo, com as ajudas carregadas, ao primeiro intento, mas sem o brilhantismo que desejava.
Foi assim a azarada (pelo mau tempo) corrida das Festas da Praia da Vitória. E agora começa já a preparar-se a corrida do próximo ano, de que se pode já levantar uma primeira ponta do véu: é intenção dos organizadores prestar em 2020 homenagem à memória de Joaquim Bastinhas, cavaleiro que inaugurou esta praça e que deu a alternativa a João Carlos Pamplona e também a seu filho Tiago, toureiro que também aqui, na Terceira, desfrutou de um ambiente enorme e foi ídolo deste tão aficionado público.

Já a seguir, não perca: os momentos da despedida do forcado Filipe Lemos, a sequência das pegas, os melhores momentos da corrida e todas as fotos dos Famosos que resistiram ao dilúvio e não arredaram pé da praça apesar da tempestade.

Fotos M. Alvarenga