Ana Batista: valor, arte, classe e grande verdade em duas lides emotivas e de grande triunfo perante o público sa sua terra |
João Ribeiro Telles entusiasmou o público com grandes ferros no último toiro da noite numa lide de enorme brilhantismo |
Noite dura para os Amadores de Alcochete, com pegas complicadas a cargo de Pedro Gil, João Machacaz (a emendar Diogo Timóteo) e João Guerreiro |
O público, em verdadeira euforia, aclamou-o de pé aos gritos de "Torero!Torero!". Diego Ventura deu ontem uma vez mais a real dimensão da sua maestria e do momento único que está a viver, reafirmando um reinado de que tão cedo não será destronado. Esgotou Salvaterra e enfrentou toiros duros e sérios, não murubes. Atingiu a plenitude, pode com todos os toiros e a todas as dificuldades ele chama facilidades. Um monstro do toureio a cavalo!
Miguel Alvarenga - O público estava eufórico e de pé gritava "Torero! Torero!" quando já no final da sua última actuação Diego Ventura trouxe à praça o famoso cavalo "Dolar" e, num adorno que já não precisava de fazer (tinha Salvaterra a seus pés!), lhe retirou a cabeçada e se fez ao sério toiro de Canas Vigouroux, de frente e com verdade, cravando dois pares de bandarilhas "do outro mundo". No primeiro sofreu um toque, mas só sofre toques daqueles quem põe a carne no assador como ele pôs e quem pisa aqueles terrenos de elevado compromisso.
Ventura terminava assim uma lide de grande maestria e valor, perante um toiro codicioso, sério e a impor respeito, exigindo, pedindo contas, onde a brega, os recortes, a lide e os ferros foram qualquer coisa de fantástico.
Mas foi no seu primeiro toiro, segundo da noite, que Diego Ventura provou, de facto, o grande toureiro que é. Não precisava de provar nada, já disse tudo, mas foi importante reconhecer, como já acontecera em Évora, que ele pode com todos os toiros e brilha com todos os encastes, não anda no "facilitismo" dos toiros murubes. Toiro "branco", reservado, distraído, manso até dizer chega. Reagia ao castigo com duras cargas próprias da sua mansidão e depois parava e esperava. Não investia. E quando os toiros não investem, investe Ventura. Obrigou-o a "marrar", obrigou-o a ser toiro. Andou permanentemente em cima dele, provocando-o, aguentando as investidas momentâneas e "desnorteadas" do distraído toiro de Canas Vigouroux. E do impossível fez uma faena enorme.
Diego Ventura atingiu a plenitude. Dele podem - mas não devem - dizer tudo, menos que não é um toureiro de uma dimensão quase extra-terrestre, um toureiro de uma outra galáxia. Tem cavalos para todas as situações e tem arte, valor e coração para tourear todos os toiros. Vive, não é de hoje, nem de ontem, já é de há muitos anos, um momento único. Ontem superou-se a ele próprio, agigantou-se como se agigantam os eleitos, os predestinados. E voltou a dizer quanto vale. Vale muito. E não há igual.
Ana, guerreira de classe
Ana Batista jogava em casa. Mas isso não significa nada. Nem sempre os santos da casa fazem milagres. Mas ela fez. Foi bafejada pelo melhor lote de uma corrida onde pairou a mansidão, mas esteve presente a seriedade. E por isso, a emoção e o perigo. Mas ainda bem que o foi. Ana aproveitou com unhas e dentes esta oportunidade única de tourear na sua praça completamente esgotada e numa corrida de máxima competição. E com a classe e o valor que todos lhe reconhecemos há anos e anos, impôs, também ela, a força do seu toureio de raça e de alma. De arte e de risco, também. De grande coração.
Deu o mote para o que viria a ser uma noite de triunfo logo no primeiro toiro da noite, tipo como quem diz: "vieram aqui para ver o Ventura, mas eu também cá estou!". E esteve.
Lidou com primor os seus dois toiros, dando-lhes vantagens, indo de frente a vencer o piton esquerdo em ferros que foram de uma seriedade e de uma verdade arrepiantes.
Ana Batista é, escrevo-o há muito tempo, uma toureira de classe, de uma enorme classe, não precisa de fazer espalhafato, nem precisa de gritar, ela toureia, ela impõe em cada momento a sua raça, o seu valor e, não tenho qualquer dúvida em o dizer, a sua maestria.
Protagonizou ontem duas lides notáveis que bem podem ser consideradas como um marco importante na sua carrreira de tanto valor. Não é fácil triunfar ao lado de Ventura. Não é fácil ser Mulher e estar, como ele está, num patamar tão elevado num mundo e numa profissão que é maioritariamente dominada pelo homens - e por homens de barba rija. Ana Batista já não tem nada a provar a ninguém, a sua carreira e a sua trajectória estão aí e são por demais reconhecidas. É uma guerreira. Mas é uma guerreirra com imensa classe e com um valor igual dos homens da sua profissão. Muitos dos quais, doa lá a quem doer, não lhe chegaram ainda sequer aos calcanhares.
João Campeão Telles
João Ribeiro Telles é outro cavaleiro que vive a sua época de grande euforia. Está num momento alto e triunfa por onde passa. É um Campeão. Um dos triunfadores da última temporada. E que está a prosseguir essa cavalgada de êxitos com uma regularidade constante.
O seu primeiro toiro, outro "branco" de Vigouroux, não tinha ponta por onde se pegar. Manso perdido, reservado, com perigo. João ultrapassou todas as barreiras que tinha que ultrapassar em nome da grandeza do seu toureio, da sua entrega, dos argumentos que tem neste momento para fazer frente a quaisquer contrariedades. Foi uma lide de muito valor e emoção, que só não resultou redonda pela escassa matéria prima que teve pela frente e o impediu de brilhar como queria. Recusou a volta à arena, que o director de corrida autorizou, mas foi reconhecido e aplaudido no centro da arena.
O último toiro da noite também não primou pela bravura, mas evidenciou pelo menos mais qualidade que o terceiro. E aí, sim, João Telles pôde estar à altura do seu estatuto e elevar bem alto a grandeza do seu toureio. Brega vistosa e mandona, pisando terrenos de compromisso grande, impondo-se, lidando com alegria, chegando ao público. Bem nos compridos, foi nos curtos que João levou o público ao rubro. Os últimos dois ferros, entrando pelo toiro dentro, quarteando-se num palmo de terreno e cravando de alto a baixo, reunindo ao estribo como mandam os livros e defendem os antigos, foram de uma verdade e de uma emoção que é difícil descrever.
Em suma, na noite de mais um "estrondo" de esplendor de Diego Ventura, Ana e Telles não sairam por baixo. Estiveram à altura. Não foram meros espectadores da apoteose de Diego.
Uma grande pega de Bernardo Dentinho
Frente a toiros na generalidade mansos, mas perigosos, com seriedade e a transmitir emoção, era de adivinhar desde o início que a noite não seria fácil para os forcados. E não foi. Mas foi uma noite de valor. E de redobradas emoções.
Esteve ontem por cima o Grupo de Montemor. Sem que isso signifique, obviamente, qualquer tipo de desprimor para o valor dos consagrados Amadores de Alcochete - que tiveram ontem uma noite bem mais dura e com maiores complicações para resolver.
Vasco Ponce fez a primeira pega da noite, à primeira, com elevado brilhantismo, até pareceu fácil. O Grupo de Montemor é um exemplo a ajudar e ontem voltou a sê-lo. E Francisco Godinho, há que enaltecê-lo sempre, esteve grande a rabejar.
A grande pega da noite - um verdadeiro monumento! - fê-la Bernardo Dentinho ao terceiro toiro da corrida, na segunda intervenção dos montemorenses. Calmaria no cite, dando vantagem ao toiro, provocando-o quando quis, foi um portento a recuar, toureando, mandando na investida do poderoso Canas Vigouroux. Fechou-se com braços de ferro e enorme decisão, aguentou derrotes e mais derrotes até o grupo fechar o círculo e dar por consumada a pega (ao primeiro intento, ressalve-se). E que grande pega!
A quinta pega, última do Grupo de Montemor, esteve a cargo de António Calça e Pina, forcado de valor, que consumou à segunda, com valor e boas ajudas, depois de na primeira intervenção o toiro lhe ter dado um derrote alto na cara e outro no valoroso primeiro ajuda António Cecílio. Esta pega foi brindada a Rogério Amaro, que se encontrava num camarote e recebeu do público da sua terra o reconhecimento numa luxuosa ovação. Merecida.
Grupo de Alcochete: valor em noite dura
Os Amadores de Alcochete não tiveram tarefa fácil. A sua primeira pega, segunda da noite, foi executada com valor por Pedro Gil à segunda tentativa. Pega dura e emotiva, com o grupo todo a ajudar bem.
Para a cara do quarto toiro da noite foi Diogo Timóteo, que se lesionou num ombro, lesionando-se também o primeiro ajuda André Tavares, que sofreu forte embate contra as tábuas ficando inanimado na arena. Momentos difíceis, de ansiedade e dramatismo, sobretudo tendo em conta as tragédias que nos últimos anos marcaram o grupo. Mas graças a Deus os dois forcados foram assistidos na enfermaria pela equipa médica da praça, pelo Dr. Manuel Passarinho e por José Ribeiro da Cunha, técnico de primeiros socorros e membro do INEM, tendo ambos regressado à trincheira para junto dos companheiros quando se lidava o último toiro da corrida. Este toiro foi pegado na sua primeira tentativa, a dobrar o companheiro lesionado, pelo poderoso João Machacaz - que recusou depois a merecida volta à arena, pedida com clamor pelo público e devidamente concedida pelo director de corrida Lourenço Luzio.
João Guerreiro defendeu no último toiro a honra da jaqueta de ramagens do consagrado Grupo de Alcochete. Na primeira tentativa o toiro pura e simplesmente nem o deixou tocar-lhe, atirou-o pelo ar com uma violência brutal. Na segunda, o forcado fechou-se e o primeiro ajuda João Rei esteve decidido, mas a pega também não resultou, tendo o toiro "desfeito" o grupo de novo com brutal violência. A pega acabou por ser consumada à quarta tentativa, a sesgo e com as ajudas carregadas, apenas e só para salvar a honra do convento. Que ficou salva, de facto.
Notável actuação de todos os bandarilheiros (os de Ventura mal pisaram a arena, esteve tudo a cargo dele! Como deve ser e tantas vezes não é...).
No final das cortesias prestou-se a anunciada homenagem à memória do malogrado cavaleiro Manuel Vinagre, campeão de equitação, que morreu em Dezembro com apenas 19 anos, vítima de acidente quando participava num passeio equestre em Benavente. O antigo forcado João Braga, seu primo, foi o autor de bonitas e sentidas palavras recordando o jovem cavaleiro, na presença de seus pais e irmãos e avô e depois um amigo de Manuel Vinagre, Mateus Abecasis, recordou-o também tocando no seu acordeão uma das suas melodias preferidas. Momento emotivo e que se repetiu depois com os brindes que os três cavaleiros e os dois grupos de forcados fizeram, nas suas primeiras intervenções, à família do saudoso cavaleiro.
Na direcção da corrida, com a usual competência e aficion, esteve ontem Lourenço Luzio. O cornetim José Henriques honrou os cavaleiros com a arte dos seus toques, como sempre.
Foi uma noite histórica e com história, foi uma vitória para a Tauromaquia, para o dinâmico empresário Rafael Vilhais (que ao iníciod a corrida fez questão de agradecer ao público aquele moldura humana e aquela praça esgotada com um dia de antecedência, facto que não acontecia em Portugal talvez há mais de vinte anos) - e foi sobretudo uma vitória e uma noite de plena consagração para Diego Ventura, primeiro entre os primeiros.
Fotos Emílio de Jesus