terça-feira, 3 de julho de 2018

João Telles a dois dias da grande noite em Lisboa: "Estou preparado e moralizado, vai ser uma corrida de arte!"



A dois dias da grande noite no Campo Pequeno ao lado de Morante e Manzanares, foi um João Telles tranquilo, sereno e confiante que encontrámos ontem na Quinta Grande, em Coruche, cenário magnífico para mais uma super-produção fotográfica com a maestria e a arte do nosso Emílio de Jesus.

Miguel Alvarenga (texto) 
e Emílio de Jesus (fotos)

O dia amanheceu escuro, cheio de nuvens e ameaça de chuva. Estamos em Julho, mas o Verão já não é o que era. Nove e meia da manhã. A hora combinada. Um quarto de hora antes telefonou-nos: “Onde estão? Já estou pronto e à vossa espera”. Quinta Grande, Coruche. É ali que João Ribeiro Telles mora agora, com sua Mulher e sua filha, na propriedade de avó Maria da Graça, depois de ter deixado o apartamento lisboeta em que morou nos últimos anos, mesmo ao lado da praça de toiros do Campo Pequeno. Espera-nos impecavelmente trajado de fato curto. Tem dois cavalos prontos para a sessão fotográfica. O “Ilegível”, preto, com ferro Ortigão Costa e o “Histórico”, castanho, ferro João Telles.
“Não trouxeste um cavalo ruço, dava jeito para fazer o contraste com as cores do campo…”, diz o Emílio. “Nenhum, mas se for preciso vai-se buscar o spray e pinta-se um deles…”, graceja o Carlos, funcionário da casa há muitos anos.
Ele e mais dois jovens empregados de cavalos vão-nos acompanhar ao longo da manhã na demorada sessão de fotografias que havemos de fazer diante da lindíssima casa da quinta, nos jardins, no campo, na capela. Ao André depressa o Emílio baptiza de “palhaço” - “sem ofensa, não leves a mal”, atira - para que que ele chame a atenção dos cavalos com saltos diante deles e com o tilintar do guizo, o objectivo é as orelhas do animal “ficarem alinhadas” para o retrato.
Toda esta história dura das nove e meia da manhã à uma da tarde. Acho que o “Ginja” já nem pode ver o Emílio à frente - mas aguenta. Ele é um perfeccionista. Agora a mão assim, agora a perna assado, agora o cavalo para a direita, o outro a olhar para a esquerda, o chapéu inclinado e até queria arrancar duas orquídeas para que o João as levasse na mão, assim como se fosse um par de bandarilhas…
“Ó Emílio, deixe-se disso… vou agora estragar as orquídeas da minha avó… e eu não bandarilho a duas mãos, só às vezes…”, desculpa-se o toureiro. Emílio encolhe os ombros: "Ok, respeito, mas vou daqui com as orquídeas atravessadas...". Paciência.
Primeiro as fotos diante da casa, depois no meio das árvores, a seguir em casa, com um livro aberto numa página em que tem um retrato do avô David, depois na capela da quinta. E foi para o João uma sorte o Emílio não se ter lembrado de o querer fotografar a fazer ski aquático, com o frio que estava, porque há por lá uma escola disso…
João Ribeiro Telles é um Senhor na melhor acepção da palavra. Teve berço e isso faz toda a diferença. É, com dez anos de alternativa, um dos últimos representantes dessa “raça” fidalga que era noutros tempos apanágio dos toureiros a cavalo. Um Ribeiro Telles. Um Ribeiro da Cunha.
Aguenta, sem protestos e sem pestanejar, as repetições de fotos, o recomeçar de novo, as exigência do perfeccionista Emílio de Jesus. Pisca-me o olho de quando em vez e ri. "Tem que ser, tem que ser...".
“Desculpa, ‘Ginja’, mas isto ou é a sério ou não vale a pena. O ‘Farpas’ é diferente dos outros”, justifica o repórter.
“Eu sei que é, mas ainda vamos demorar muito? É que eu tenho que ir montar…”, procura suavizar o João.
“Ainda temos que conversar? Vai-me fazer algumas perguntas?”, questiona-me.
E eu tranquilizo-o: “Não preciso de perguntar nada, vamos falando…”.
“Pois, você é um mestre nisso, sabe o que há-de escrever depois”, responde ele.
Mais retrato, menos retrato, vamos conversando. “O Miguel acha que o Campo Pequeno vai encher? Era bom para todos!”.
Acho que sim, digo-lhe. É uma corrida única, uma corrida de arte. Diferente das demais. Bem sei que ele será na quinta-feira o único cavaleiro e que não vai competir com mais ninguém a não ser com ele próprio. Mas é importante que marque a diferença e as jogue todas defendendo a arte portuguesa ao lado de duas das maiores figuras mundiais do toureio a pé, Morante e Manzanares.
“É uma corrida única, mesmo. E é para mim uma honra estar nesse cartel ao lado de dois dos toureiros que mais admiro”, diz João.
E não podia estar ele melhor, não terá sido por acaso que a empresa do Campo Pequeno o elegeu para repartir cartel com dois toureiros de arte como Morante de la Puebla e José Maria Manzanares, sendo ele também um ginete de arte e de inspiração. Já o saudoso Ludovino Bacatum me dizia, e eu não esqueço nunca, que o João Telles (pai) era “o Curro Romero do toureio a cavalo”. Foi sempre um toureiro de uma imensa arte e de uma profunda inspiração momentânea. E quem sai aos seus…
“Estou bem montado, estou preparado e estou moralizado, moralizadíssimo, para esta corrida de quinta-feira. É um cartel que motiva do público uma exigência diferente. O público vai querer ver arte no Campo Pequeno”, adianta o João, enquanto o Emílio "dispara a metralhadora".
E diz mais:
“Eu próprio vou tourear, mas vou também com o desejo de desfrutar do bom toureiro do Morante e do Manzanares”.
A manhã vai passando e as fotos também. Agora assim, agora aqui, depois ali, a olhar para cima, mãos postas, cavalo para ali, cavalo para acolá, as ordens vai dando o Emílio. E o João cumpre-as, que remédio...
“Está aqui uma coisa fantástica. Estou desejando chegar a casa para ver as fotos todas…”, diz o nosso repórter.
É quase uma da tarde quando a sessão termina com as últimas fotos na lindíssima e tão simples capela da Quinta Grande. João Ribeiro Telles segue, já tranquilo, para mais um dia intenso de treinos. A máquina está afinada, os cavalos e ele próprio em forma para quinta-feira em Lisboa.
Sobre os dez anos de alternativa, diz apenas que os comemorará na tradicional corrida de 17 de Agosto em Coruche e pouco mais. “Havia um projecto maior que estava delineado pelo ‘Nené’, mas a que não foi dado seguimento. Vai haver essa comemoração em Coruche e pouco mais, não sou muito dessas coisas, desses festejos… são só dez anos de alternativa…”, explica o toureiro.
O sol não há meio de abrir. “Estamos em Julho e este tempo…”, lamenta João Telles. Depois de quinta-feira em Lisboa, toureia no domingo em Espanha e no dia 20 em Mont de Marsan, França e no início de Agosto na Ilha Terceira na corrida das Festas da Praia da Vitória.
Antes, a 27 deste mês, toureia em Salvaterra com Ana Batista e Diego Ventura, toiros de Canas Vigouroux. “Sairam complicados em Évora, não foi?”, pergunta. “Vamos ver como são os de Salvaterra…”.
Sejam como forem, “estou preparado”, garante. Preparado para isso e muito mais.
Já em fim de reportagem, um casal espanhol que se apronta para uma lição de ski aquático, chega-se perto de João Telles: “Você é o toureiro, não é? Somos espanhóis e vimo-lo no ano passado tourear aqui em Coruche, fantástico! Podemos tirar uma foto consigo?”. E tiram duas, três.
Emílio arruma o material. João Telles vai despir o traje curto e rumar aos cavalos e aos treinos. Dar a última afinação às “máquinas” antes da noite de quinta-feira no Campo Pequeno.
Dez anos depois de naquela mesma arena ter tomado a alternativa das mãos de seu pai e ainda com o testemunho do lendário Mestre David, seu lembrado avô.
Chamar-se Ribeiro Telles e ter aos ombros a responsabilidade de defender e dar sequência a uma das mais célebres e aclamadas dinastias de toureiros nacionais, é uma coisa que faz toda a diferença. E João sabe-o. E dá todos os dias a cara por isso.