Foi um dos matadores de toiros portugueses mais valentes e também um dos mais castigados pelos toiros, tinha o corpo ornamentado de cicatrizes das cornadas que sofreu em praças de todo o mundo. Foi um lutador, às vezes controverso e às vezes polémico, chegou a ter grande parte do mundo tauromáquico contra si, mas depressa se reconciliou com (quase) todos depois de um período menos feliz nos tempos revolucionários. Foi um dedicado ganadeiro e foi sobretudo um grande empresário - a quem muito deve a esmagadora maioria dos toureiros portugueses que na sua praça de Albufeira deram os primeiros passos. Fernando dos Santos tinha 83 anos e morreu esta manhã em Albufeira, vítima de vários problemas de saúde que se vinham agravando nos últimos anos. Deixou para trás um rasto de luz inapagável
Miguel Alvarenga - Fernando dos Santos era nos últimos anos um homem cansado e sofrido, com vários problemas graves de saúde, cardíacos e de circulação sobretudo, que se vinham agravando, fruto de uma vida vivida intensamente, ele que veio do nada, de origens humildes, nascido em terras de Alcobaça e se fez toureiro - e dos bons - à custa da sua luta, da sua tenacidade, da sua força tremenda de vencer.
Quando no passado dia 1, em Huelva, perguntei à Sofia como estava o pai, fiquei com a clara percepção de que o fim se aproximava. As lágrimas vieram-lhe aos olhos: "Está muito mal". E segundo me disse hoje o Fernando Guarany, seu amigo de uma vida inteira, desde quarta-feira da semana passada que estava internado no hospital. Morreu esta manhã com 83 anos, fechando parte de um capítulo importante da história do toureio a pé em Portugal, depois também das mortes recentes de Amadeu dos Anjos (2018), Ricardo Chibanga (2019), Mário Coelho e Armando Soares (2020) e José Júlio (2021), guerreiros de uma época de ouro de que Fernando dos Santos também fez parte.
A sua história está escrita e não a vou repetir. Lembrar apenas que deu nas vistas como novilheiro e foi nesse tempo apoiado pelo célebre toureiro espanhol Pepe Luís Vásquez e pelo empresário português José Guerra, que lhe abriram as portas. Depois de uma brilhante e badalada trajectória como novilheiro, chegou à alternativa em 1966, na tarde de 9 de Outubro, na praça espanhola de Mérida, apadrinhado por Vicente Punzón, com o testemunho de Luis Alviz. Não esteve feliz no toiro do doutoramento, da ganadaria de Solis de Casablanca, mas triunfou forte no segundo, a que cortou as duas orelhas, saindo em ombros da praça.
A 12 de Outubro de 1968 confirmou a alternativa em Las Ventas, Madrid, com Santiago Castro "Luguillano" e Adolfo Ávila "Paquiro", frente a toiros de Molero Hermanos - e dois anos depois rumou ao México, onde fez enorme sucesso e se afirmou entre as primeiras figuras, confirmando a alternativa na Plaza Monumental a 22 de Fevereiro de 1970, tendo como padrinho o matador espanhol Miguel Mateo "Miguelín".
Regressou a Portugal no ano de 1972, toureando ainda bastante até ao final dos anos 70. Já retirado das arenas, vestiu pela última vez o traje de luces para tourear a 10 de Abril de 1982 na corrida de inauguração da sua Monumental de Albufeira, repartindo nessa derradeira tarde cartel com o mítico matador espanhol Paco Camino, o não menos célebre rejoneador Ángel Peralta, os cavaleiros José Mestre Batista e José Zuquete e os Forcados de Beja, então comandados por João Caixinha, frente a toiros da ganadaria que entretanto fundara, a das Sesmarias Velhas, sediada na herdade que comprou em Baleizão.
Antes de construir e inaugurar a Monumental de Albufeira, correra o país a dar corridas de toiros numa praça desmontável que depois viria a fixar em Alvor e a partir de 1977 em Albufeira, no mesmo local onde depois ergueu a Monumental.
Nos meses que se seguiram à revolução do 25 de Abril, Fernando dos Santos liderou o grupo de toureiros revolucionários que no ano de 1974 ocupou o Sindicato dos Toureiros e saneou Diamantino Vizeu, fundador do louvável Fundo de Assistência dos Toureiros; e esteve depois também ligado ao processo de ocupação das ganadarias e à campanha de ataque ao cavaleiro D. José João Zoio nesse mesmo ano de 1974, obrigando-o a ter que ir tourear para Espanha - atitudes e protagonismos que lhe valeram muitos cortes de relações no meio tauromáquico e o selo de figura controversa e "revolucionária" que acartou às costas durante alguns anos.
De 1985 a 1993 foi empresário da primeira praça do país, a do Campo Pequeno, sofrendo na pele as consequências desse período revolucionário, com boicotes por parte de ganadeiros e até de toureiros - que se recusaram a participar nas suas corridas. Mesmo assim e com toda essa situação adversa, manteve-se nove anos à frente da Monumental de Lisboa, trazendo ao Campo Pequeno muitas das grandes figuras do toureio de Espanha, entre as quais "Antoñete", "Espartaco", Paco Ojeda e outros. Foi no seu reinado que se realizaram as célebres corridas em que fizeram as suas despedidas do público português toureiros como António Chenel "Antoñete" e Álvarito Domecq.
Aos poucos, Fernando dos Santos foi-se reconciliando com o mundo tauromáquico e quase todos (mas não todos) lhe perdoaram as atitudes inesperadas e intempestivas do tempo da revolução, em nome de uma trajectória de valor e respeito que protagonizou enquanto toureiro em arenas de todo o mundo.
Não era homem de guardar rancores ou prolongar desavenças. E a breve história que vou contar bem o prova. Fernando dos Santos esteve dez anos de relações cortadas - por um problema que talvez nem justificasse tamanha zanga - com o toureiro brasileiro Fernando Guarany, seu amigo de sempre, meu amigo de muitos anos. Um dia jantávamos os dois em Lisboa, quando sugeri ao Guarany: "Eu vou resolver isso, Fernando!". "Como?", perguntou-me. Assim: agarrei no telefone, liguei ao Maestro Fernando dos Santos e disse-lhe: "Sou (não era, mas fingi) apoderado de um toureiro e preciso que mo ponha a tourear em Albufeira!". "Quem é o toureiro?", indagou. "O Fernando Guarany!", respondi. "Muito bem, venham cá à herdade amanhã para ele tourear umas vacas!", disse ele, como se nada se tivesse passado. Fomos. E os dez anos de desavenças ficaram ali esquecidos.
Até 2019, Fernando dos Santos foi o empresário que mais espectáculos deu por ano - nunca menos de vinte na Monumental de Albufeira -, iniciando sempre a temporada com novilhadas em que deu oportunidades à esmagadora maioria dos toureiros nacionais, hoje em dia grandes figuras, que muito lhe ficaram a dever porque na sua praça deram os primeiros passos.
Foi apoderado uma única vez na vida. Do matador de toiros Manuel Moreno, que levou à alternativa na Monumental de Badajoz.
Nos últimos anos, foi também empresário da praça da Nazaré e geriu durante dois anos a de Beja, entre outras.
Em Julho de 2020, Fernando dos Santos vendeu a praça algarvia - e até o usufruto de que beneficiava para a sua utilização depois de um primeiro negócio realizado anos antes - a uma empresa imobiliária, pondo-se um ponto final na realização de touradas em Albufeira. A última ali realizada foi em 25 de Outubro de 2019, ano em que Fernando dos Santos voltou a ser referenciado pela IGAC como o empresário que mais festejos taurinos realizou (vinte).
Em 2016 foi homenageado na praça de toiros da Nazaré pelo 50º aniversário da sua alternativa e em Setembro de 2017 recebeu das mãos de Paulo Inácio, presidente da Câmara de Alcobaça, sua terra natal, a medalha de Mérito e Honra, numa cerimónia realizada no Salão Nobre do Município e em que marcaram presença muitos amigos, entre os quais o Padre Vitor Melícias.
Fernando dos Santos era casado em segundas núpcias com a artista plástica Orlanda Gamboa, de quem teve uma filha, a Sofia, que durante muitos anos foi a sua primeira e mais entusiástica colaboradora nas organizações da Monumental de Albufeira. Nos últimos anos, o cavaleiro Tito Semedo, marido de Sofia (casada anteriormente com o também cavaleiro tauromáquico Filipe Gonçalves) era o seu braço direito.
Com a morte de Fernando dos Santos a Tauromaquia perde mais uma das suas grandes figuras. Um Toureiro dos maiores - e um empresário dos mais aficionados e mais empreendedores e talvez aquele que nas últimas décadas melhor soube apoiar os novos valores das arenas.
Que em paz descanse. Curvo-me respeitosamente perante a sua memória e desta tribuna volto a endereçar as mais sentidas condolências a toda a Família enlutada, muito em particular a Orlanda Gamboa, sua companheira de uma vida e à Sofia, que ele amou como ninguém.
Foto Emílio de Jesus/Arquivo
