Quando estamos a pouco mais de um mês do 17º aniversário da sua trágica morte, tempo para lembrar - e recordar aos mais novos - essa figura ímpar do mundo tauromáquico que foi Fernando Camacho, o apoderado que foi diferente e via sempre mais além. Viveu a correr, sempre à frente do tempo.
Miguel Alvarenga - Nascido a 16 de Março de 1929 em Moura, no Alentejo, Fernando Norberto de Matos Camacho Ribeiro tinha 77 anos no dia em que morreu (18 de Maio de 2006, dia da reinauguração do Campo Pequeno). Teria hoje 94.
Entrara no ‘mundillo’ taurino quando tinha 19 anos pela mão do célebre apoderado espanhol Andrés Gago Suárez, quando começou a representar o matador de toiros Manolo Vásquez em Portugal. Na década de 60 trocou a profissão de empresário têxtil pela de apoderado – agente artístico de toureiros –, e esteve vários anos radicado em Sevilha.
Homem marcante, com uma personalidade fortemente vincada e que foi uma das maiores e também mais polémicas referências da Tauromaquia portuguesa durante largos anos, Fernando Camacho ainda hoje é recordado como o último dos grandes apoderados que Portugal teve. E nunca mais houve outro igual.
No final da década de 80, princípios da de 90, foi empresário da praça de toiros do Campo Pequeno numa sociedade que integrava também Jorge Pereira dos Santos, Mário Freire, Quintano Paulo e seu filho José Manuel Ferreira Paulo (Cachapim) e António Paes de Sousa. Foi na vigência desta empresa que se comemorou o centenário da praça de toiros lisboeta.
Foi casado em primeiras núpcias com Odete Rodrigues, irmã de Amália Rodrigues, de quem teve uma filha. Posteriormente, casou e viveu o resto da sua vida com Virgína (Gina) Puppe dos Santos, mãe de dois filhos, José Maria e Conceição, que Camacho criou desde pequenos e amava como se fossem seu filhos.
Ao longo da sua imensa e recordada trajectória dirigiu a carreira de famosos toureiros como Francisco Mendes, Armando Soares, Amadeu dos Anjos, João Moura, Paulo Caetano, Joaquim Bastinhas, José Manuel Correia Lopes, João Salgueiro, Carlos Arruda, Rui Bento Vásquez, Pedrito de Portugal e muitos mais. Representou em Portugal grandes figuras do toureio mundial como Carlos Arruza (mexicano) e César Girón (venezuelano). No ano em que morreu apoderava o então novilheiro João Diogo Fera, hoje matador de toiros.
Foi um homem adorado por uns e odiado por outros, mercê do seu carácter vincado e profundamente polémico. Esteve envolvido em fases e episódios marcantes da história da tauromaquia portuguesa e nos anos 80 viveu no México, onde foi apoderado do rejoneador Ramón Serrano.
Natural de Moura, como acima referimos, chegou a integrar o grupo de forcados local nos seus inícios, mas cedo descobriu a veia para o marketing e o negócio taurino, consagrando-se como um dos maiores do mundo e, de longe, o maior em Portugal.
Numa entrevista à revista “Novo Burladero” em Agosto de 1982, Fernando Camacho falava dos seus inícios no mundo dos toiros, das primeiras corridas a que assistiu com seu pai no Campo Pequeno, do dia em que foi espreitar o famoso Manolete à saída do Hotel Avenida Palace em Lisboa e o viu acompanhado por sua noiva Lupe Sino, das influências que recebeu daquele que foi o seu maior mestre, o histórico apoderado espanhol Andrés Gago (que recordava sempre com admiração e carinho), das épocas em que viveu em Sevilha e acompanhou o matador Manolo Vásquez, dos apoderamentos de Francisco Mendes e Armando Soares, de Paulo Caetano e João Moura e sobretudo das suas imensas vivências - que davam um livro que nunca chegou a ser escrito.
"Se alguma coisa desejo para a recta final da minha vida, é acabar os meus dias em Sevilha. O modo como se discute o toiro, esse silêncio da Real Maestranza, a maneira como se encara o toureio feito arte, esse bairrismo, essa defesa quase tendenciosa do toureio andaluz, fazem de Sevilha uma terra única!", dizia nesse ano de 1982.
Recordamo-lo com saudade. E a nostalgia de nunca mais ter havido outro taurino como ele.
17 anos depois da sua morte, volto a recordar - já o fiz aqui há uns tempos - algumas das muitas vivências que partilhei com o apoderado dos apoderados, Fernando Camacho. Para que saibam. E para que não esqueçam.
Muitos desconhecem a história, mas eu conhecia Fernando Camacho desde os meus tempos de criança. A Gina, sua mulher, foi uma das maiores amigas da minha mãe e desde sempre me lembro dela e do Tio Fernando, como sempre o tratava. Chegámos, inclusivamente, a passar férias de Verão juntos numa casa alugada na Costa da Caparica. Vinha desses tempos, quase de criança ainda, a minha grande amizade e admiração por ele.
E a seu lado vivi episódios e histórias que jamais esqueci. Para não me alongar vou contar apenas três ou quatro, começando pela da casaca do João Moura - uma das mais engraçadas.
Estávamos nos inícios da década de 80 e Manuel Gonçalves, regressado de França onde vivera alguns anos depois de ter abandonado Moçambique por obra e (des)graça da “descolonização exemplar”, era ao tempo o empresário da praça de toiros do Campo Pequeno. Camacho apoderava o número-um dos cavaleiros, João Moura.
Manuel Gonçalves era um empresário sério, demasiado sério para o tempo, mas "super agarrado ao dinheiro". Discutia tostões até levar o seu barco a bom porto, mas depois não falhava nunca na altura de pagar aquilo que combinara. Combinar é que era o pior…
E nessa altura andavam os dois, ele e Camacho, há algumas semanas, em guerra aberta pelo cachet de João Moura. Havia, se bem me lembro, uma diferença de 500 contos (vivia-se ainda a era saudoso do escudo) entre o que Camacho exigia e o que Gonçalves oferecia.
"Vista-a o senhor
e toureie você!"
Uma manhã, telefonou-me o Tio Fernando. Tinha por norma acordar as pessoas às oito da manhã:
- Meu filho, pode vir comigo ao Campo Pequeno, que tenho uma reunião com o Manuel Gonçalves e gostava que estivesse presente?
E eu fui. Encontrámo-nos na Pastelaria “Londres” e Camacho trazia um embrulho enorme atado com cordéis. Perguntei-lhe o que era. “Já vai ver”. E subimos ao primeiro andar, ao escritório de Manuel Gonçalves na praça de toiros.
- O que é isso que aí traz? - indagou Gonçalves, admirado.
E Camacho abriu o embrulho. Era uma casaca azul bordada a ouro, de João Moura. E atirou:
- Uma vez que não quer pagar ao João Moura o dinheiro que ele quer e como são os dois mais ou menos da mesma estatura, vista o senhor esta casaca e toureie você, que o Moura não vem ao Campo Pequeno!
Manuel Gonçalves começou a bufar por todos os poros, andou de um lado para o outro a gesticular e a barafustar: “Você é tramado!”. E depois chegou a acordo. E Moura foi tourear a Lisboa. Precisamente com aquela casaca. E com os 500 contos a mais que Gonçalves não lhe queria pagar.
A zanga e o gravador
Uns anos depois, muitos, Camacho e Gonçalves zangaram-se e nunca mais fizeram as pazes. Morreram ambos sem nunca se terem reconciliado.
E num momento em que Camacho voltara a apoderar o matador Pedrito de Portugal, Gonçalves queria contratá-lo, mas jurara a pés juntos que não chegaria nunca à fala com o “inimigo de estimação”.
Houve vários intermediários para tentar fechar o negócio, mas as conversações foram sempre infrutíferas. Até que um dia Camacho me “nomeou” para intermediar a contratação de Pedrito. E andei nisso três semanas. Com um gravador - que às tantas já fervia e nem sei mesmo como nunca explodiu…
Ia a casa de Manuel Gonçalves e gravava o seu discurso para Camacho e depois ia a casa de Fernando Camacho e gravava a sua resposta a Gonçalves - e por aí adiante. Ligava o gravador e cada um ouvia o que o outro dissera. E respondia. Andei nisto, de um lado para o outro e eles "falavam" um com o outro através do meu gravador.
Por fim chegaram a acordo e Gonçalves contratou Pedrito - sem nunca ter falado ao vivo com Camacho, apenas através do meu gravador.
Depois, jamais fizeram as pazes e Camacho morreu, há 17 anos, sem ter voltado a falar com Manuel Gonçalves. Fui eu quem lhe deu a trágica notícia. E lembro-me, como se fosse hoje, das palavras de Manuel Gonçalves: “Era um tipo tramado, mas foi um grande taurino e não vai haver outro como ele”.
A prisão em Madrid e a estocada
de Pedrito na Moita
Em 1990 Fernando Camacho foi preso em Madrid, acusado de pertencer a uma rede colombiana de narcotraficantes. Esteve cerca de um mês detido em Carabanchel e acabou por ser libertado depois de colaborar com a Justiça. Um processo complicado que nunca chegou a ser bem esclarecido.
Diz-se, aliás, que a sua morte, há 17 anos, terá sido um ajuste de contas precisamente dos traficantes que ele denunciara às autoridades. Que o mataram ou que o obrigaram a matar-se, tal a pressão que lhe vinham fazendo. Nessa manhã da inauguração do Campo Pequeno, Camacho deu (ou deram-lhe) um tiro na cabeça num jardim da Avenida do Brasil, próximo de sua casa, em Lisboa.
Ao tempo, viajei para Madrid e investiguei o caso da prisão de Camacho. Cheguei a falar na Audiência Nacional com o célebre juiz Baltazar Garzón e falei também com membros da Polícia que estiveram envolvidos no processo da investigação e da prisão de Camacho - detenção que ocorreu numa auto-estrada próxima da capital espanhol, quando transportava milhares de pesetas alegadamente provenientes do narcotráfico. A operação foi conjunta entre a Polícia espanhola e a Judiciária portuguesa.
A história foi publicada no semanário “O Título”, que eu dirigia na altura. Camacho esteve dez anos sem me falar e chegou mesmo a instaurar-me um processo cujo julgamento demorou mais de um ano no antigo Tribunal da Boa-Hora. Fui defendido pelo saudoso Dr. João (Zina) Torre do Valle, ilustre guitarrista e que era o advogado do jornal. E as provas e as testemunhas que apresentei foram mais que suficientes para que fosse absolvido.
Quase dez anos depois, em Junho de 2001, um amigo comum perguntou-me se eu aceitaria que Camacho me telefonasse, que ele queria falar comigo. Disse que sim, obviamente.
E ele ligou-me, como se nada se tivesse passado, como se ontem tivéssemos falado - e já tinham passado dez anos - e até ao fim nunca na vida falámos do caso de Madrid. Camacho era astuto - e era estranho, às vezes. O caso madrileno foi assunto tabú desde que recomeçámos a nossa amizade, como se nunca tivesse acontecido.
Telefonou-me e disse que precisava de jantar comigo. Marcámos para a noite seguinte. Foi-me buscar a casa, entrei no carro, deu-me um beijo (foi sempre assim que nos falámos) e rumámos a um luxuoso restaurante do Parque Eduardo VII, não me lembro o nome, nem sei se ainda existe. O assunto era este:
- Meu filho, o Pedrito tem que relançar a sua carreira e em Setembro vai "deitar um toiro abaixo" na Moita…
- Matar um toiro?
- Sim. E preciso que o menino me apoie. Se me disser já que é contra e que vai armar merda depois, desistimos já da ideia. Mas peço-lhe que nos apoie.
E eu disse que apoiava. O jantar foi cordial, divertido, igual a tantos outros que tínhamos tido durante a vida. E Camacho nunca falou da nossa zanga, dos dez anos em que não nos falámos, do processo que me moveu e perdeu em tribunal, muito menos do caso de Madrid.
Em Setembro fui para a Moita com o Emílio. No caminho contei-lhe o que ia acontecer. Nem o empresário da praça, que era ao tempo o Engº Inácio Ramos, sonhava. E penso que muito pouca gente sabia, à excepção do saudoso Balé, a quem Camacho também contara e em cuja casa Pedrito se vestiu nessa noite.
Pedrito matou o último toiro da corrida, o sobrero da ganadaria de Conde Cabral. Mas na véspera tinha ocorrido o atentado às Torres Gémeas em Nova Iorque, as televisões e os jornais não falavam de outra coisa e apesar da noite de euforia que se viveu na praça de toiros da Moita, a programada estocada de Pedrito não teve o impacto que se desejava. Foi apagada por Bin Laden...
O último telefonema
No dia 16 de Maio de 2006 o Campo Pequeno foi reinaugurado, após seis anos de obras, com um grande espectáculo de Filipe La Féria e Camacho lá estava entre os convidados da empresa, como eu.
No dia seguinte telefonou-me. 24 horas depois, no dia 18, era a primeira corrida de toiros do novo Campo Pequeno.
- O Campo Pequeno está lindíssimo, não achou? Que grande obra. Houve quem se chocasse, mas eu adorei. Está mesmo fantástico.
E foi a última vez que lhe ouvi a voz.
No dia 18 de Maio, cumprem-se 17 anos dentro de um mês, fui de manhã a Vila Franca fazer uma entrevista ao cavaleiro Paulo Jorge Santos. No regresso a Lisboa, o telemóvel vinha a tocar no meu bolso. Parei a Vespa já na zona da Expo. Era o Armando Jorge Teixeira que me estava a ligar para me dar a notícia:
- O Camacho matou-se esta manhã!
Nunca mais nada foi igual no mundo taurino português.
Fotos D.R.
1981 no Restaurante "Tavares" (Lisboa) com Vera Lagoa, na apresentação da página "O Diabo ao Quite" |
Anos 60, com o matador português Júlio Gomes e o espanhol José Fuentes |
Quando apoderava Joaquim Bastinhas, com o saudoso cavaleiro e o seu bandarilheiro Jorge Marques |
Outubro de 1980, em Sevilha, com o matador mexicano "El Calesero" (que toureara no festival dessa tarde) e com o Dr. Fernando Teixeira, João Queiroz e Manuel Andrade Guerra |
Nos tempos áureos em que foi apoderado de João Moura |
Camacho com duas grandes referências da nossa tauromaquia: o apoderado Raúl Nascimento e o empresário Alfredo Ovelha |
Numa das célebres Corridas da Imprensa no Campo Pequeno com o matador "Niño de la Capea" |
Em Santarém com Amâncio Grilo |
Janeiro de 1986 numa barreira na Plaza México |