terça-feira, 5 de agosto de 2025

Segunda corrida da Feira de Abiul: a afirmação do toureio a pé e a raça suprema dos Fernandes

Meia casa na segunda corrida de Abiul: é preciso ser Herói para
comprar um bilhete para o sol... Deviam dar uma medalha aos
aficionados que têm tamanha coragem para aguentar 40 graus!

Miguel Alvarenga - Estava um calor de morte na tarde deste domingo em Abiul. A corrida era para começar às seis da tarde e foi adiada uma hora, come se isso servisse da alguma coisa. O calor tórrido das seis é exactamente o mesmo calor das sete. Ou se fazia um adiamento a sério, vamos lá, para as oito ou mesmo para as nove, ou não valia a pena fazer nada. Como não valeu. A praça, que na véspera à noite estava cheia, teria esgotado no domingo se tivesse sido à noite. Assim, registou uma entrada de meia casa, com a sombra cheia e o sol... às moscas. 

O que é compreensível e naturalíssimo. Aliás, digo mais: tomem rapidamente a decisão de passar a realizar a corrida mista de domingo também à noite ou então ofereçam uma medalha, em jeito de condecoração pelo acto heróico, a quem tiver o desassombro (a loucura) de comprar um bilhete para o sol e fazer o supremo sacrifício de assistir durante três horas (ou mais...) a uma tourada sentado na pedra com 40 graus de temperatura... Credo, cruzes, canhoto! Ninguém merece...

Ver uma tourada em Abiul tem um gosto especial, quase único. Há praças e praças, públicos e públicos. O público de Abiul é entusiasta, colaborante, vai ali para se divertir, é meio conhecedor, mas não barafusta por tudo por nada. Não tem a mania que é entendido - mas é. A praça é única. Antigamente, lembro-me bem, tinha uma árvore (um sobreiro?) nas bancadas. Como se fosse a coisa mais natural deste mundo. Não passar ali o comboio já era uma grande sorte... Depois tiraram a árvore. Mas a praça de Abiul continuou a ser especial. Diferente. Gostei de voltar. Já lá não ia há uns bons anos.

A corrida mista deste ano estava muito bem montada e superiormente rematada. Sandra Barros, Presidente da Junta de Freguesia, e a sua equipa gestora da praça de toiros, Pedro Barros, Miguel Martins e Samuel Simões, sabem fazer as coisas bem feitas. Com rigor e com aficion, com louvável profissionalismo, seriedade e todo o empenho. O resultado é este: há muitos anos que a Feira Taurina do Bodo em Abiul é uma das mais importantes do país. Voltou a sê-lo.

É o que eu digo: pode o Tejo ficar sem água, podem as touradas acabar no Campo Pequeno, mas em terras como Paio Pires, como a Ilha Terceira, como Abiul e outras mais haverá sempre corridas. Porque haverá sempre entusiasmo popular e gente boa e séria para as organizar.

E em Abiul veneram-se as suas gentes - e outras. No sábado foi homenageado Fernando Cruz, emblemático funcionário da praça há muitos anos. Ontem, homenageou-se a Banda do Samouco, que abrilhantou a corrida e estreou um pasodoble dedicado a esta vila aficionada de Pombal.

Nesta segunda corrida foram lidados toiros da ganadaria Herdeiros de Varela Crujo, toiros de nota altíssima, de apresentação aplaudida e comportamento muito sério, exigentes, com transmissão e muita emoção. 

Depois de uma corrida muito séria (Concurso de Ganadarias) na sexta-feira em Paio Pires, de outra corrida exigente e marcante da ganadaria do Engº Jorge de Carvalho no sábado à noite aqui em Abiul, no domingo foi a vez de a ganadaria Varela Crujo brindar os aficionados desta vila com um curro imponente e sério. Sentiu-se o perigo, o risco, a verdade e a seriedade - atributos que tantas vezes têm andado afastados das nossas praças por obra e (das)graça dos modernos toiros "nhoc-nhoc" que desvirtuam e renegam a verdadeira essência deste espectáculo...

O primeiro toiro de Varela Crujo, superiormente lidado por Rui Fernandes, foi um toiro nobre e que não criou grandes incómodos ao cavaleiro, nem aos forcados. Os restantes foram toiros exigentes, com teclas, a pedirem o Bilhete de Identidade aos toureiros, a transmitir seriedade e perigo.

Com toiros deste calibre, dá gosto ir às praças, No último toiro, a directora de corrida Sandra Strecht premiou - e muito bem - a ganadaria com a volta à arena do seu representante, neste caso Bernardo, filho do ganadeiro António Manuel da Cruz e Crujo Fialho Afonso (sobrinho do saudoso Senhor Crujo e casado com sua filha, irmã do saudoso cavaleiro José Francisco Varela Crujo, meu sempre lembrado amigo).

É pena, insisto, que continuem a promover a corrida mista da feira na tarde de domingo, com um calor tamanho que desmotiva qualquer ser humano de cometer um acto de tanta coragem (e loucura) de ir à praça. Seria muito mais agradável realizar este festejo à noite. E seria muito mais importante promover o toureio a pé, que tanto precisa que o promovam, numa corrida de praça cheia ou esgotada, em vez da meia casita que se registou nesta quentíssima tarde domingueira. Pensem nisso. E emendem já o erro de tantos anos na próxima temporada.

Mesmo assim, a "meia casa" esteve com os toureiros a pé e vibrou do princípio ao fim com a arte do matador Diogo Peseiro e do novilheiro Tomás Bastos.

Diogo Peseiro, o nosso novo matador de toiros, tem um valor que não me cansarei nunca de elogiar e de aplaudir. Vive em Espanha, está semanas e semanas sem tourear e sempre que toureia triunfa. Certamente que um toureiro desmoraliza estando parado, sem corridas, sem ver um futuro risonho pela frente. Peseiro continua na sua luta, de tantos anos e tantos sacrifícios, de cabeça erguida e sorriso nos lábios. E de moral em alta. É preciso ter imenso valor.

Em Abiul, esteve como se toureasse todos os dias. Enorme, a tragar e a arriscar diante do seu primeiro toiro, um "tio" de Varela Crujo que dava pouco tempo para pensar e que ele lidou superiormente, desde a arte com o capote ao poderio e à vontade com as bandarilhas, à entrega e ao sabor e sentimento com a muleta. Deu duas voltas à arena.

O seu segundo toiro era mais reservado e mais complicado. Peseiro voltou a entregar-se e a fazer alarde do seu grande profissionalismo, toureou com entrega e muito ofício, mas sem conseguir alcançar o brilho da primeira intervenção. Foi aplaudido, mas não deu volta à arena.

João Pedro Silva "Açoreano", Joaquim de Oliveira e Duarte Silva foram os seus bandarilheiros, discretos, coadjuvando as lides com arte e com saber.

Tomás Bastos, mesmo sem ter tido em Madrid a sorte com que todos sonhávamos, continua em Espanha a "lutar pela vida" e a procurar afirmar-se num circo onde os leões são muitos e em cujos palcos conseguir triunfar e ter nome não é a coisa mais fácil deste mundo...

Tomás tem raça e tem alma, está toureado e está moralizado. E ontem até bandarilhou - e com que arte e poderio o fez! - os seus dois toiros, tércio que é sempre meio caminho andado para o êxito, mas do qual Tomás abdicou nas últimas actuações (não bandarilhou em Madrid, onde isso teria certamente constituído uma mais valia para ele próprio). Aqui em Abiul, o público gosta de ver os matadores bandarilharem. Fazia parte do contrato a obrigação de bandarilhar. Pena que não faça sempre, porque Tomás Bastos é exímio e está como peixe na água quando pega nas bandarilhas.

Dedicou a primeira faena de muleta a Marco Gomes e sua Mulher, Ana Meira, seus fiéis seguidores e dedicados obreiros do museu taurino de Alter do Chão. E a faena foi uma obra de bom gosto e de aprumo, a confirmar um toureiro em excelente momento.

No seu segundo toiro, outro bom exemplar de Varela Crujo, com presença, idade e trapio, como os outros, Tomás Bastos voltou a estar variado com o capote, poderoso e confiante com as bandarilhas, e artista dos pés à cabeça com a muleta, desenhando uma faena de bom gosto e apontamentos de classe superior, denotando já uma elevada maturidade e uma cabeça de toureiro adulto e sabedor.

Tomás está a confirmar tudo aquilo que vem demonstrando nas duas últimas temporadas. É uma nova estrela e um novo ídolo dos aficionados portugueses. Próxima paragem em Portugal: 5 de Outubro em Vila Franca. Ninguém vai perder.

A cavalo, brilharam, marcando a diferença e sem ser mais do mesmo (que é o que infelizmente se passa na maioria das nossas touradas), os cavaleiros Rui Fernandes e Duarte Fernandes, seu sobrinho. Dois cavaleiros diferentes do normal. E que era importante marcarem mais presenças na temporada lusitana.

Com a maestria dos eleitos e a arte dos predestinados, Rui Fernandes protagonizou uma lide superior ao primeiro toiro de Varela Crujo, um toiro com transmissão e raça, destacando-se na forma como bregou e levou o toiro embebido na garupa do cavalo em ladeiros de muita emoção e grande impacto com o público. Brega desenvolta e ferros de muita verdade que entusiasmaram os aficionados e os fizeram levantar nas bancadas. Toureiros como o Rui, com esta verdade e esta elegância, fazem sempre a diferença onde se anunciam. O Rui já fez obra, não tem que provar nada a ninguém - e até fez escola. Tem o sobrinho e vários pupilos já a deitar cartas nas arenas.

Duarte Fernandes já disse o que era preciso sabermos nas poucas vezes em que têm por cá toureado: é um cavaleiro de alto risco e superior aprumo, que faz falta às grandes competições e às primeiras praças e que, se por cá toureasse mais, ajudaria com toda a certeza a manter viva a chama das rivalidades e a força (cada vez menor, porque é sempre tudo igual) do toureio a cavalo.

Sofreu aparatosa queda quando nem ainda cravara um ferro no segundo toiro da tarde, que se desembolou e infringiu uma cornada no cavalo "Heron", mas voltou à arena com a raça dos eleitos e a força dos heróis que não se dão jamais por vencidos, para enfrentar em quarto lugar um toiro de Varela Crujo possante e exigente, com o qual esteve enorme, criando um verdadeiro alvoroço na praça, deixando todo o público em delírio e a seu lado, aclamando-o numa muito aplaudida volta à arena.

Em último lugar, tio e sobrinho lidaram a duo o maldito toiro nº 29 que colheu o cavalo de Duarte e que entretanto voltou a ser embolado. Toiro incómodo e a pedir contas, que ambos lidaram em perfeita e total sintonia. Não sou propriamente um grande entusiasta das lides a duo, mas quando são interpretadas por dois cavaleiros parentes, que se entendem, como foi o caso, têm sempre um pouco mais de graça e de sabor.

Pegaram os briosos forcados Amadores Académicos de Coimbra, comandados por Ricardo Marques, com duas pegas à primeira e uma à segunda. Foram os triunfadores da Feira de Abiul do ano anterior, o que lhes concedeu a honra de estarem neste cartel-estrela do ciclo.

Foram forcados de cara, com excelentes intervenções dos companheiros a ajudar, os forcados Martim Rodrigues, João Gonçalo e João Tavares.

Voltaram a estar na direcção de corrida a sempre eficiente e aficionada Sandra Strecht e o médico veterinário José Luis da Cruz, com os toques a cargo do carismático José Henriques, que esta temporada celebra o 30º aniversário da sua estreia como cornetim nesta praça de Abiul - uma boa homenagem, sugiro, para lhe fazerem na próxima corrida de dia 14.

Fotos M. Alvarenga

Rui Fernandes
Duarte Fernandes
Diogo Peseiro

Tomás Bastos