O jornalista Miguel Sousa Tavares defende (como sempre) as tradições portuguesas e a tauromaquia, neste brilhante artigo publicado no semanário "Expresso" e que aqui se reproduz, pela clareza e pela importância, com a devida vénia:
Prossigamos na destruição do património
público do país. Já vendemos o idioma e o cimento aos brasileiros, a
electricidade aos chineses, os combustíveis, parte da banca, do Douro e da
comunicação social aos angolanos, vamos vender a TAP aos colombianos ou
espanhóis, o espaço aéreo a quem se verá, as minas aos canadianos, a construção
naval a quem quiser, e até a água (a agua, meus senhores!) está na agenda. Mas
até o pouco que resta, como património histórico, cultural, social e económico,
está ameaçado - agora, não por excesso de liberalismo, mas por excesso de
estupidez. Na semana que agora entra, o Bloco de Esquerda propõe-se fazer votar
na Assembleia da República uma lei que, redigida de forma sibilina e cobarde,
visa abrir caminho para a posterior proibição de touradas, circos com animais,
caça e pesca desportiva. Para já, o projecto de lei diz pretender apenas
"condicionar" o "apoio institucional ou a cedência de recursos
públicos" à "não existência de actos que inflijam sofrimento físico
ou psíquico, lesionem ou provoquem a morte do animal". Parece pouco, mas é
imenso: "condiciona" (ou seja, proíbe) desde logo a cobertura
televisiva da RTP às corridas de touros, as reportagens sobre caça ou pesca
desportiva; proíbe a cedência de terrenos camarários para a instalação de
circos com animais ou criação de zonas de caça ou de pesca municipais (a Câmara
Municipal de Mora, por exemplo, já não poderá voltar a organizar o Campeonato
do Mundo de Pesca Desportiva, onde os peixes da Ribeira do Raia, coitadinhos,
às vezes moncos; a de Benavente não poderá ceder terrenos para as corridas de
lebres com galgos, onde, embora não morrendo, o "sofrimento psíquico"
das lebres é, infelizmente, bem presumível; a de Mértola, cuja principal fonte
de receita turística é a caça, vai ter de cessar todos os seus apoios à
actividade que ainda mantém o concelho vivo uns quatro meses por ano); e etc.,
não há limites para a imaginação persecutória dos "amigos dos animais".
Mas isto, como é evidente, é apenas um primeiro passo, ciclicamente ensaiado, e
cujo fim é chegar à proibição, pura e simples, de tudo o que não entendem nem
querem entender e que acham que lhes fica bem defender. Vou, portanto, repetir
também a minha cíclica resposta: este lado padreco, Bairro Alto e
urbano-esquerdista do Bloco de Esquerda é intragável. A fatal companhia dessa
anémona política chamada "Os Verdes" (sempre a oeste das ordens do
PCP e a leste de tudo o que interessa na política de Ambiente), é enjoativa. E
a inevitável participação do grupelho 'fracturante' do PS, estremecendo de
emoção de cada vez que se fala de mulheres, gays ou animais, sendo estágio
obrigatório de ascensão política lá na agremiação, é desprezível. Todos irão
fatalmente votar a favor de um projecto de lei que é verdadeiramente fascista
na sua essência, culturalmente ignorante e ditatorial, centralizador e
arrogante. Já sei: vou ser uma vez mais esmagado nos vossos blogues e Facebooks
(Twitters, perdão), onde, à falta de melhores causas ou de coragem para outras,
a vossa grande liberdade é perseguir a liberdade alheia. Mas, sabem que mais?
Estou-me nas tintas para a vossa opinião. Tenho pena, apenas. Tenho pena de
quem não entende a beleza de uma tourada ou o "silêncio poético e misterioso,
um silêncio que estremece" do toureio de José Tomas ("El País"),
de quem nunca cheirou a esteva e o orvalho de uma manhã de caça, de quem nunca
perdeu horas sentado na margens de rio à espera que o peixe morda o anzol, de
quem vai ao circo e não quer ver os leões do Paquito Cardinalli. Tenho pena,
mas não posso fazer nada, que não isto: lutar para que não passem.
Foto D.R.