quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Noite "branca" e triunfo glorioso dos Forcados na tradicional terça-feira nocturna da "Palha Blanco"

Miguel Alvarenga - É diferente, e sente-se uma adrenalina especial e contagiante, assistir a uma corrida de toiros na praça "Palha Blanco". Ainda guardo a esperança de que, um dia, alguém tenha a coragem de fazer descerrar nos corredores da praça de Vila Franca um painel de azulejos igual (ou semelhante) ao que está no pátio de quadrilhas da praça espanhola de El Puerto de Santa Maria, com a célebre frase atribuída ao mítico toureiro "Joselito": "Quien no ha visto toros en El Puerto, no sabe lo que és un dia de toros". E agora atrevo-me eu a também dizer: quem não viu toiros em Vila Franca, não sabe o que é um dia de toiros. Pode ser que um dia alguém se lembre de também fazer na "Palha Blanco" o que fizeram na praça de El Puerto. Porque é merecido. Porque é verdade. E porque é de toda a justiça fazê-lo.

Vila Franca é diferente. O seu público, a sua aficion, tem reacções distintas, e às vezes inesperadas e quase desesperadas, do público das outras praças. Os aficionados de Vila Franca são rabujentos, são eternos protestantes, fazem barulho, incomodam. Mas sabem ver toiros. Sabem o que querem. Não comem gato por lebre. E não gostam de ser enganados.

O que aconteceu na "corrida mista" de domingo só foi possível - e permitido - acontecer por "a causa da confusão" ter sido Tomás Bastos, a nova estrela do toureio a pé nacional e, acima de tudo, o novo ídolo da aficion vilafranquense. Eu explico.

Como sabem, caiu do cartel o muito esperado David de Miranda (não sei se era propriamente muito esperado, mas alguma expectativa existia para ver um matador de toiros que está a dar tanto que falar este ano em Espanha), por ter sofrido uma lesão lombar na véspera, por colhida. Esperava-se, era lógico, era obrigatório, que a empresa o substituísse por uma outra figura de Espanha ou, em segunda análise, por um dos cinco matadores portugueses no activo. Em primeiro lugar, penso eu, estaria o esquecido e injustiçado António João Ferreira, porque é o professor (com o Maestro Vitor Mendes) da Escola de Toureio "José Falcão". Mas tanto esse ou outro dos nossos matadores tinham tido cabimento neste cartel e nesta substituição que não houve.

A empresa optou por "substituir" o lesionado Miranda por mais duas lides a cavalo, mantendo como único espada o novilheiro Tomás Bastos. Segundo o Regulamento, que é a lei regente do espectáculo tauromáquico, deixou assim de ser uma corrida mista e passou a ser uma corrida à portuguesa (um mano-a-mano de Francisco Palha e Tristão Ribeiro Telles com quatro toiros de Murteira Grave) e, a seguir, uma novilhada, com Tomás Bastos frente a dois novilhos da mesma ganadaria.

Mas a realidade é que essa distinção e essa modificação/alteração ao formato inicial da anunciada corrida mista, não teve da parte da empresa nenhuma rectificação. Foi pura e simplesmente ignorada. Não estava afixado nas bilheteiras e nas portas, como deveria estar, que, face à forçada ausência do matador David de Miranda e à decisão (discutível) da empresa de não o substituir, o espectáculo deixava de ser uma corrida mista e passava a ser duas, uma corrida à portuguesa e uma novilhada

Como já noutros tempos se fartou de acontecer, até mesmo as cortesias deviam ter sido feitas em separadoPalha e Tristão faziam as usuais cortesias antes de lidarem os quatro toiros e a seguir Tomás Bastos fazia novas cortesias para dar início à novilhada. Nada impede a realização de dois ou três ou quatro espectáculos distintos num mesmo dia e numa mesma praça, até em sequência, mas isso tem que ser esclarecido e previamente anunciado ao público. E ali isso não aconteceu. Foi tudo baralhado e apresentado como uma corrida mista. Sem um matador. Com dois cavaleiros, um grupo de forcados e um novilheiro. Salganhadas só mesmo em Portugal... mas não deveria acontecer...

Assim, como decorreu, foi ilegal? Pode ter sido, sim. Espera-se que a IGAC assuma uma posição. E era de bom tom que a empresa se explicasse e retratasse.

No meio dessa trapalhada, também ninguém disse nada (porquê?), mas o espectáculo "duplo" de domingo teve outras incidências (in)dignas de alguma meditação. Dois toiros da ganadaria Murteira Grave foram chumbados no sorteio por não terem os pesos regulamentares. Em cima da hora, a empresa foi buscar dois toiros à ganadaria Canas Vigouroux, que ficaram como sobreros

Já foi anormal toda a confusão da não substituição de David de Miranda. Mas também não foi normal, não é normal, que uma ganadaria com a importância e a responsabilidade da de Murteira Grave, tenha enviado para uma praça tão exigente como a de Vila Franca dois toiros com pesos abaixo do que é permitido... Meus caros amigos, ou há moralidade, ou comem todos. E não houve grande moralidade nas anomalias que marcaram o primeiro espectáculo desta Feira de Outubro em Vila Franca. A tauromaquia tem que andar mais na ordem. Ponto final. E vamos à corrida de ontem.

A corrida de ontem, a tradicional nocturna de terça-feira onde sempre se exalta o Forcado Vilafranquense, tinha, como tem sempre, os Forcados de Vila Franca como motivo principal para chamar público à "Palha Blanco". E os toiros "brancos" (jaboneros) de Pedro Canas Vigouroux como primeiro atractivo. A seguir, vinham os cavaleiros. Cartel de competição, vulgar, igual a muitos, sem propriamente um chamariz especial. 

O público preencheu meia casa forte. Se se apertassem todos, tinha ficado meia casa por preencher. Já vi muitas corridas de praça cheia nesta nocturna, uma das datas mais fortes de Vila Franca...

Ambiente e expectativa havia. Mas não se pode dizer que o público tenha saído eufórico da "Palha Blanco", todo contente por ter visto uma grande corrida de toiros. Foi antes uma corrida assim-assim...

Os "brancos" toiros de Canas Vigouroux cumpriram na generalidade, à excepção do primeiro, que era um manso perdido em permanente fuga para as tábuas e que teve um comportamento estranho ao longo de toda a brilhante lide que lhe foi dada pela experiência e pela maturidade do grande João Ribeiro Telles, que foi, dos três, o menos bafejado pelo sorteio ontem em Vila Franca.

O segundo toiro foi um toiro de bandeira, bravo, de uma nobreza imensa, que nunca largou o cavalo de Miguel Moura, mas mesmo nas muitas vezes em que quase o alcançou nos espectaculares ladeios do cavaleiro de Monforte, teve a preocupação de não lhe fazer muito mal. Toiro nobre, toiro que, segundo nos informou o dedicado e tão aficionado maioral Joaquim Manuel, foi indultado e regressa ao campo. Toiro de investidas emotivas, com imensa transmissão e comportamento fantástico. O público exigiu e o director Ruben Fragoso lá mandou fechar a porta e premiá-lo com volta à arena antes de recolher aos curros. Depois, a jovem ganadeira Maria Vigouroux (filha de Pedro) deu merecida e muito aplaudida volta à arena com Miguel Moura, o forcado Vasco Carvalho e o primeiro-ajuda Diogo Duarte.

Os restantes toiros não foram toiros de bandeira como este. Tiveram emoção, transmissão, mobilidade, apresentação e trapio irrepreensíveis, cumpriram sem muitos alardes. Foi uma corrida boa, a confirmar o bom momento da ganadaria de Pedro Canas Vigouroux. Exceptuando o já referido manso saído em primeiro lugar.

No que aos cavaleiros diz respeito, João Ribeiro Telles "bailou com as duas mais feias", foi o menos bafejado pela sorte no sorteio. Deu a volta ao manso que lhe tocou a abrir praça, só um grande toureiro como o Ginja faria tudo que ele tão bem fez sem matéria prima para brilhar. E ao quarto toiro da noite, outro Canas Vigouroux com alguma escassez de qualidade, impôs João a força do seu toureio e a raça da sua emotiva arte de bem lidar. Cairam dois ferros curtos, não por falha do cavaleiro, mais certamente por terem batido noutros. E no fim, com o furacão "Ilusionista", deu o habitual show de emoção com dois ferros de grande efeito. Resumindo, não foi uma noite redonda igual a tantas que nos tem proporcionado, mas esteve João Telles em bom nível e sem defraudar ninguém numa praça que sempre o acarinha. Ou não fosse ele um dos primeiros da linha da frente.

Miguel Moura alcançou os momentos de maior impacto e mais aplaudidos pelo público frente ao fantástico segundo toiro da noite. Muito pela forma como lidou e, sobretudo, pelas voltas que deu à praça a ladear a milímetros da cara do empenhado e tão nobre toiro de Canas Vigouroux. Foi, digamos, uma lide triunfal marcada pelos "ladeios" que lembram sempre aquelas corrida mágicas de seu pai, nos seus princípios, com os famosos cavalos "Ferrolho" e "Importante". Triunfo importante e reconhecido pelo exigente público de Vila Franca, que não regateou aplausos ao Miguel. Falta só dizer que a sua atitude começou logo no início, mandando recolher os bandarilheiros e recebendo o toiro com uma emotiva sorte de gaiola. Grande Miguel!

No quinto toiro, muito sério e exigente, Miguel Moura teve uma actuação menos sonante, mas nem por isso com menos empenho e menos entrega. Esteve bem. Mas tinha estado muito melhor no seu primeiro toiro. E este quinto não lhe proporcionou voltar a entusiasmar o público com a sua arte de tão bem ladear. Essa foi a questão. Depois de uma lide de triunfais ladeios, esta foi uma lide sem ladeios possíveis e por isso não causou no público o mesmo efeito que a outra.

Quanto a João Salgueiro da Costa, que vinha cumprindo uma temporada de triunfos até descer alguns degraus no passado sábado em Beja, quase se diria que ontem caiu pela escada abaixo na "Palha Blanco". Mas, apesar da impressionante e aparatosa queda que sofreu no sexto toiro, motivada em exclusivo pela recusa do cavalo em ir ao toiro, sendo apanhado quando lhe virava as costas em fuga, causando a queda do cavaleiro, felizmente sem consequências de maior, Salgueiro não caiu propriamente pelas escadas abaixo, pela simples razão de que tem um coração de leão e uma raça própria dos eleitos.

Veio abaixo no terceiro toiro da noite, com uma lide irregular e pouco conseguida, com algum desnorteamento, quase a perder os papéis. O director concedeu música, mas o público manteve-se em sonoro protesto até ao final da lide. Não deu volta à arena.

No sexto toiro, começou mal e com o público a protestar pelas sua primeiras negas do cavalo, não o recolheu, insistiu, e à terceira recusa o toiro não perdoou, alcançou-o em fuga e derrubou o cavaleiro. Salgueiro trocou então de montada (devia tê-lo feito logo após a primeira nega do cavalo de saída...) e procurou emendar-se. Mas ontem o público não estava, decididamente, com ele. Protestos, assobios e uma lide que acabou com um bom ferro e depois ainda mais dois (o último já muito forçado e com o director de corrida a ceder e a permitir o que antes não lhe autorizara) e com uma desajustada euforia de Salgueiro, de braços abertos, como se tivesse tido um triunfo apoteótico. Noite para esquecer e com capotazos a mais nos dois toiros e a permanente presença dos bandarilheiros de Salgueiro na arena, presença também muito protestada pelos aficionados. Ontem, nada correu de feição para aquelas bandas, são noites que (não) acontecem... Por outras palavras: o verdadeiro Salgueiro de outros triunfos não foi aquele que esteve ontem em Vila Franca. Era um parecido...

Bem, sobretudo a colocar os toiros para os forcados, os bandarilheiros das três quadrilhas: Duarte Alegrete e António Telles Bastos (de Telles); Jorge Alegrias e João Bretes (de Moura); e Tiago Santos e Duarte Silva (de Salgueiro).

Noite grande, como é de tradição, para o glorioso Grupo de Forcados Amadores de Vila Franca de Xira, como já anteirormente referi, com cinco pegas monumentais à primeira e só uma à terceira, a quinta, inicialmente tentada pelo valoroso Guilherme Dotti (que sofreu uma luxação no ombro na sua única tentativa) e depois consumada, na sua segunda intervenção, pelo grande cabo Vasco Pereira.

As restantes pegas, como também já referi - e cujas fotos mais logo aqui vamos mostrar - foram consumadas à primeira por Miguel FariaVasco Carvalho (com uma ajuda memorável de Diogo Duarte, que o acompanhou na aplaudida volta à arena), Rodrigo CamiloRodrigo Andrade e André Câncio. Grande Grupo!

Houve pegas brindadas a antigos elementos do grupo (primeira da noite); a José Maria Charraz, o empresário de que se fala, que foi nesta temporada um dos grandes apoiantes do Grupo de Vila Franca (um dos que mais corridas deu ao grupo); e também a Pedro Dotti, o professor dos forcados juvenis, as futuras estrelas dos Amadores de Vila Franca.

Assumiu os comandos da corrida o novo e eficiente director Ruben Fragoso, assessorado pelo médico veterinário José Luis da Cruz. O cornetim foi Pedro Henriques Lopes, o neto do veterano José Henriques, seu digno sucessor.

Acabo como comecei: público diferente, praça distinta. Quem nunca viu toiros em Vila Franca, não sabe o que é um dia de toiros. Não sabe mesmo.

Fotos M. Alvarenga

Maestria e maturidade de João Telles permitiram que
alcançasse triunfos com toiros menos brilhantes
Vila Franca rendeu-se aos "ladeios" e à ousada arte de Miguel
Moura
Salgueiro não esteve ontem na "Palha Blanco"...