Praça cheia ontem no Campo Pequeno em corrida de gala à antiga portuguesa iniciada com o sempre apreciado cortejo a evocar as Touradas Reais de outros tempos |
Rigor, classe e elegância na faena de bom gosto de António Brito Paes, um toureiro que renasceu esta temporada |
Marcos Tenório Bastinhas, exuberante e ousado, teve ontem uma lide destacada e brilhante na última corrida do ano em Lisboa |
Muito bem e acertado esteve Duarte Pinto, um toureiro que cativa e prima pela verdade e emoção dos ferros com batida ao piton contrário, à antiga |
Miguel Moura galvanizou o público do Campo Pequeno. Foi o primeiro grande e absoluto triunfador da corrida de ontem, no quinto toiro, provocando autêntico alvoroço nas bancadas |
Miguel Alvarenga - A temporada no Campo Pequeno arrancou coxa e com pouquíssimo público na praça na noite inaugural que esteve para ser marcada pelo regresso de João Salgueiro, mas acabou por ficar na lembrança como um dos maiores desaires ocorridos naquela praça desde a reabertura, no que a entrada de público e interesse pelo cartel diz respeito. Afinal a montanha pariu um rato e o regressado ficou onde estava, sem acrescentar nada à história...
Depois e apesar de mais uma ou outra casa menos preenchida, a época veio em crescendo até atingir o seu ponto alto nas duas corridas de Pablo Hermoso e também nas duas de Padilla, num ano que foi, depois do arranque com “El Juli” em 2015, por fim, o do ressurgimento em absoluto do toureio a pé em Portugal.
Ontem - todos viram pela RTP - a temporada terminou com uma enchente (havia poucos lugares desocupados) e um ambiente que fez lembrar o das grandes noites que ali se viveram nos anos de ouro da Tauromaquia. Que, pelos vistos, se estão de novo a viver. Ou a reviver. Por obra e graça da empenhada gestão que tem sido levada a efeito por Paula Matadouros Resende e Rui Bento. Ainda e sempre, a dupla de sucesso deste renascer da Festa Brava em Portugal - sem nunca, por nunca, podermos esquecer, mais a mais nesta temporada em que se comemorou o 10º aniversário da reinauguração da praça, o papel de destacado relevo que na vida (e na ressurreição) do Campo Pequeno teve a Família Borges. A quem presto, por inteira justiça, a minha homenagem (e os toureiros deviam fazer o mesmo), já quem, sem esta obra fantástica, já não haveria Campo Pequeno de certeza - e duvido mesmo que ainda existissem corridas de toiros noutras praças…
“Espartaco” no Campo Pequeno
Antecedida pelo tradicional cortejo a evocar as Touradas Reais, infelizmente num espectáculo onde a realeza e a fidalguia parecem ter desaparecido de vez, a corrida de ontem no Campo Pequeno contou com a presença de muitas ilustres personalidades estrategicamente bem colocadas em barreiras e contra-barreiras dos vários sectores, mas houve umas que se destacaram: as dos irmãos Ángel e Rafael Peralta e Álvarito Domecq, que vieram a Lisboa acompanhar José Samuel Lupi, seu companheiro nos anos 60 e 70 no histórico “Quarteto da Apoteose”, no momento em que este recebia, como homenagem da Administração da empresa da primeira praça do país, o Galardão Prestígio/2016; e também a do grande matador de toiros Juan António Ruiz “Espartaco”, com sua nova Mulher, depois de se divorciar de Patrícia Rato, que ocuparam uma contra-barreira do sector 1, sendo o famoso toureiro brindado pelos Forcados de Coruche no quarto toiro da noite.
A homenagem a José Lupi deu-se no início da corrida, mal terminaram as cortesias à antiga portuguesa, com a presença na arena dos seis cavaleiros e dos cabos dos dois grupos de forcados e ainda dos rejoneadores espanhóis que com ele revolucionaram a abriram portas ao toureio a cavalo, dignificando-o, em Espanha nos aos 60.
O público recebeu os Peralta e Domecq com uma calorosa ovação e depois rendeu bonita homenagem a Lupi, ficando apenas a faltar a volta à arena que se impunha - e de que ninguém se lembrou, nem sequer o director de corrida, que a deveria ter “ordenado”. Enfim…
Um àparte: ao final da tarde, como aqui referimos esta manhã, homenageou-se em cerimónia realizada no Museu da praça, a memória do cavaleiro Joaquim José Correia, quando faltavam apenas três dias para se assinalar o 50º aniversário da sua trágica morte por colhida nesta praça (16 de Outubro de 1966). Durante a corrida, apenas o cavaleiro Parreirita Cigano se dignou, no último toiro da noite, erguer o tricórnio aos céus e brindar à memória de "Quim-Zé". Nenhum outro cavaleiro o fez e nenhum forcados dos dois grupos se lembrou também de o fazer. Foi pena. Mas Parreirita saíu engrandecido. Mais uma diferença com que marcou a sua apoteótica passagem ontem pelo Campo Pequeno.
Castros sérios e cheios de sentido
Pouco bonitos de tipo, mas manejáveis, encastados e com trapio, os toiros de Fernandes de Castro foram sérios, cheios de sentido, a não permitir distracções e a não facilitar a vida a cavaleiros e muito menos a forcados. Houve mesmo alguns, caso do quarto, que se revelaram um verdadeiro bico de obra para a forcadagem.
Na generalidade e exceptuando os Forcados de Coruche com o referido quarto toiro da ordem, que acabou por não ser pegado, apenas se remediando a situação com uma espécie de pega, cavaleiros e forcados resolveram a papeleta da melhor forma e conseguiram superar todas as dificuldades impostas pela seriedade dos Castros. Houve emoção - e é isso que faz falta à Festa.
Telles e a regularidade dos êxitos
António Ribeiro Telles foi o primeiro cavaleiro em praça. O toiro transmitia pouco, mas António depressa lhe deu a volta, destacando-se sobretudo em três grandes ferros curtos a entrar pelo toiro dentro, com a decisão e o saber de quem está ali para reafirmar o seu estatuto de primeira figura.
António foi este ano um dos mais destacados triunfadores da temporada pela aplaudida regularidade de êxitos em todas as praças por onde passou. E ontem fechou a campanha com chave de ouro e uma lide clássica e de muito bom gosto - no seu melhor.
Brito Paes no bom caminho
António Maria Brito Paes atingiu uma apreciável maturidade e este ano toureou melhor que nunca, apesar de poucas vezes o ter feito, como merecia, em palcos de maior visibilidade. Estava na corrida de ontem por mérito próprio e por obra e graça de uma excelente actuação na nocturna de homenagem a Luis Miguel da Veiga.
O toiro de Castro era reservado e pouco claro na investida. Brito Paes teve uma lide com ferros de verdade e remates de bom gosto, voltando a deixar em Lisboa, com imensa classe e elevado nível, a mensagem de que pode - e tem valor para isso - ir mais longe.
Irreverência e ousadia têm nome: Bastinhas
Irreverente e ousado, como sempre, Marcos Bastinhas entrou decidido a marcar a diferença. Esperou o toiro à porta da gaiola, levou-o embebido na garupa do cavalo e parou-o, após muitos círculos, no meio da arena. Depois encastou-se, deu toda a prioridade ao toiro (que não era fácil) e deixou ferros de excelente marca, galvanizando o público.
Não terminou da melhor forma, só à terceira acertando os dois ferros do par de bandarilhas, mas o público estava com ele pela raça e pela ousadia que sempre imprime a todas as suas actuações. É um toureiro diferente. Tem a quem sair…
Duarte Pinto cativante e verdadeiro
Duarte Pinto convence pela verdade que impõe em todas as sortes, fazendo arriscadas batidas ao píton contrário (que não é o mesmo que desenhar “quiebros”), é um toureiro que prima pela simpatia e pela forma alegre como dialoga em praça com o público.
A sua actuação foi brilhante, com ferros de muito bom nível e remates artísticos de destacado e elevado relevo e a sua educação é cativante: no final, dado o azar de os Forcados de Coruche não terem conseguido brilhar na pega deste quarto Castro da ordem, Duarte foi às tábuas, entregou o seu tricórnio ao cabo João Tomás e recuou batendo-lhes palmas. No final, fez questão de entregar também ao cabo um dos ramos de flores que lhe atiraram. Pormenores que fazem toda a diferença. Como Telles e como Brito Paes, Duarte Pinto brindara a sua lide a José Lupi.
Moura: e depois, sim, veio a diferença!
O grande “boom” e as lides que provocaram, agora sim, a verdadeira explosão nas bancadas, foram as últimas duas, as dos meninos Miguel Moura e Parreirita Cigano - ambos a deixar um ambiente fora do comum para a montagem dos grandes cartéis da próxima temporada, assim o entendem as empresas, muitas vezes a maçar o pessoal com elencos de mais do mesmo, não apostando na diferença e na criatividade capaz de abanar as hostes.
Com Miguel Moura, a praça abanou, sim senhor. Muito bem a receber o toiro e na cravagem dos compridos, viria depois a endoidecer (é o temo exacto) o público, que se levantou como que impelido por molas, na ferragem curta.
Num palmo de terreno, no sítio onde os toureiros ganham o dinheiro, o atrevido Moura deixou ferros de uma verdade e de uma emoção que se não descrevem. Fantásticos.
Foi uma lide completa, rematada, sem falhas, brindada a José Lupi - uma lide com a marca única da casa, ou seja, à Moura. E o resto são cantigas.
Parreirita: um caso cada vez mais sério!
Parreirita Cigano, ainda sem alternativa, cavaleiro denominado praticante, vale mais que muitos falsos figurões - e voltou a provar que é um caso. Não vai ser. Já o é. E um caso muito sério.
Não era fácil fazer o que ele fez, depois de Moura ter deixado a parada tão alta. Mas o triunfo apoteótico do de Monforte em nada assustou o Cigano.
Ele tem uma raça e uma casta que o destacam, um valor e uma entrega que o diferenciam. E o que ontem fez, com a calmaria e a tranquilidade de quem está seguro de si e senhor da situação, veio somar pontos importantes ao seu já tão valorizado palmarés.
Parreirita Cigano é Toureiro, está bem montado, placeado, vê-se que treinado e tem a noção do que é fazer as coisas bem feitas, chegar ao público e vencer, triunfando, sem precisar de enganadoras euforias.
Grandes ferros, com ousadia e verdade, a pisar terrenos de verdade e, no fim, um “quiebro” como adorno, de parar corações. Desnecessário o “ferrinho a mais”, que não resultou em cheio, sofrendo um fortíssimo encontrão - mas entende-se a sua juventude, a sua vontade que querer mais e melhor. Provavelmente imperdoável a um veterano, compreensível num jovem que está a dar os primeiros passos e já começa mesmo a passar à frente de muitos dos instalados. Força, Parreirita, vais ser dos de cima!
Castros duros para a forcadagem
Como já antes aqui retratámos, as pegas de ontem foram duras e em nada facilitadas, antes pelo contrário, pela dureza dos toiros de Fernandes de Castro.
Pelos Amadores de Lisboa pegaram João Varanda, Manuel Guerreiro e João Vasco Lucas, todos à segunda, tendo os dois últimos, brilhantes forcados do grupo da capital, realizado nesta Gala as suas últimas pegas - sem contudo despirem a jaqueta.
Pelos Amadores de Coruche pegaram à primeira Paulo Oliveira (segundo toiro da noite) e José Marques (último toiro), tendo o quarto toiro ficado por pegar, pelo menos, a sério e como se impõe. João Peseiro foi heroicamente quatro vezes à cara do toiro e, já sem poder mais, dirigiu-se pelo seu pé à enfermaria, recebendo no trajecto uma das maiores ovações da noite depois de ter estado enorme, sózinho, com os companheiros todos por terra, na última tentativa. Acabou dobrado a sesgo por António Tomás, que ficou atravessado na cara do toiro, não consumando a sorte, pelo menos em moldes de rigor.
Lourenço Luzio dirigiu com acerto e aficion, assessorado pelo médico veterinário Jorge Moreira da Silva. Manuel Rosa Pires fez a sua última realização de uma transmissão em directo, após vinte e um ano de actividade. Uma despedida que merece ser mencionada - e aplaudida.
A temporada em Lisboa fechou com chave de ouro. Há que começar agora a delinear a próxima, que será a do 125º aniversário do Campo Pequeno. Fazendo um balanço justo e sério desta, há que reconhecer que foi vindo em crescendo, depois de ter começado tremida, terminando ontem em beleza. Reconheça-se, porque é merecido que o façamos, o trabalho positivo da equipa de sucesso do Campo Pequeno - a equipa certa no lugar certo. Bem hajam por mais um ano de distinção, Paula Mattamouros e Rui Bento. O rumo é este e o barco vai no caminho e nas ondas certas. Toda a vida os cães ladraram. E a caravana sempre passou.
Fotos Maria Mil-Homens