sexta-feira, 19 de maio de 2023

Chamusca: sinfonia de glória de Moura Jr. em tarde grande de António e a arte de Manuel Dias Gomes

João Moura Jr. e o forcado Tomás Duarte (Aposento) ganharam
ontem os prémios que estavam em disputa na Chamusca

Miguel Alvarenga - Era ainda menino e moço e lembro-me de ir de Tomar à Chamusca com o meu Pai, sempre, na Quinta-Feira de Ascensão, a que chamávamos da Espiga, ver a corrida, normalmente mista, que todos os anos ali se realizava. Por norma, é uma corrida que não gosto de perder. E ontem lá fui, com o meu amigo Francisco Romeiras, fotojornalista de craveira que acaba de lançar o fantástico livro "Forcados" - companhia excelente e agradável.

José Luis Gomes, que pelo segundo ano consecutivo gere - com competência e aficion - esta bonita e centenária (mas não muito cómoda...) praça do Ribatejo, montou um cartel atractivo, apresentando António Telles depois do seu debute em Sevilha; João Moura Júnior, líder do campeonato (onde se anuncia, as praças enchem!); e o matador Manuel Dias Gomes, seu filho, ainda e sempre um dos melhores do nosso toureio a pé, louvando-se o facto de o empresário manter a tradição antiga da corrida mista, remando contra a maré, num tempo em que são poucos os empresários a apostar na arte de Montes. Nas pegas, como não podia deixar de ser, estiveram os dois grupos da terra, Amadores e Aposento. E para este bem rematado elenco, elegeu José Luis Gomes seis toiros da emblemática ganadaria de Manuel Veiga

De apresentação suficiente, sem pesos excessivos, muito na linha da prestigiada divisa ribatejana, os toiros de Manuel Veiga proporcionaram um bom espectáculo.

Incómodo para o cavaleiro, mas a raiar a bravura, o primeiro da tarde não facilitou a vida ao Maestro António Telles, provocando-lhe mesmo uma aparatosa e perigosa queda, que felizmente não teve consequências de maior. Adiantava-se, aparecia-lhe por todos os lados, não fosse a maestria de António e as coisas teriam sido muito mais complicadas. No final, não quis dar volta com o forcado.

O segundo toiro tinha chama, arrancava-se com alegria, transmitiu e teve mobilidade. João Moura Jr. é um toureiro de outra galáxia e lidou-o de forma notável, dando-lhe vantagens, aguentando, cravando ferros de muita emoção com remates de arte e ousadia, desta vez sem "mourinas", mas com a eterna e tão distinta marca mourista de sempre, entusiasmando o público. 

O quarto toiro, segundo do lote de António Telles, foi um toiro de comportamento importante, merecedor de volta à arena para o ganadeiro (assim não o entendeu o director de corrida...), com o qual o Mestre da Torrinha, completamente refeito da queda no primeiro toiro, esteve acima da média, dando perfeita e magistral lição de cátedra - na brega, na preparação das sortes, nas reuniões perfeitas ao estribo, como mandam os livros antigos e por cá poucos cumprem. Assim se toureia, Maestro António! Os anos não passam por ele! Cada vez melhor e a ensinar-nos mais!

Outro toiro bom, o quinto. E uma lide de sonho (brindada ao ilustre ganadeiro Francisco Romão Tenório), empolgante em todos os momentos, com João Moura Jr. a levar o público ao rubro, realizando uma lide incrível do primeiro ao último ferro, a provocar a investida do toiro em terrenos de compromisso e a cravar ferros da sua marca, com remates por dentro, ladeando, galvanizando tudo e todos. 

O júri, que esteve composto por João Santos Andrade, Vasco Lucas e Manuel Romão, atribui a este lide de Moura Jr. o prémio que estava em disputa. Não vinha nenhum mal ao mundo se António Telles o tivesse ganho pela sua segunda actuação, mas o público concordou com a decisão. A lide de Moura Jr. marcou, de facto, a diferença, se bem que a competição com um Maestro do calibre de António, com 40 anos de alternativa - e de glória - não provoque propriamente o mesmo entusiasmo que o ver em competição com um dos grandes da sua geração. Telles e Mourinha estão cada qual no seu patamar de glória e destaque, mas as distâncias que os separam são grandes. E António já não tem nada a provar a ninguém, é um toureiro consagrado.

A corrida, como disse, tinha o atractivo de incluir toureio a pé. Sem competidor - e por isso, sem prémio em disputa -, Manuel Dias Gomes deixou marcas da sua excelente forma, do sentimento com que toureia, templadíssimo, ao ralenti, com um bom gosto que nos toca.

O terceiro toiro da tarde tinha trapio e tinha raça. Era brusco nas investidas, mas acudiu sempre à muleta mandona de Manuel, que o entendeu na perfeição e realizou uma bonita e variada faena, sem tempos mortos, ligada, perfeita. Estivera muito bem com o capote, em bonitas e cingidas verónicas, lentas, suaves. Com a muleta, Manuel mandou como os eleitos. Talvez uma das melhores faenas que lhe vimos nos últimos anos. Brindada a António Ribeiro Telles.

O último toiro era mais reservado, tinha menos qualidade nas investidas e Manuel Dias Gomes empenhou-se, deu a cara e escreveu bons momentos numa faena de muito empenho e notável entrega - que iniciou com atitude e decisão, de joelhos em terra.

Das pegas já aqui falei em pormenor. Despediu-se José Azoia (Amadores); brilhou Vasco Coelho dos Reis (a dobrar o seu cabo - Aposento - João Saraiva); fez uma grande pega Diogo Marques (Amadores), filho do antigo cabo Nuno Marques; e ganhou o prémio, merecidamente, Tomás Duarte (Aposento).

Bom desempenho dos bandarilheiros João Ribeiro "Curro" e António Telles Bastos (quadrilha de António Telles), João Ganhão e Benito Moura (Moura Júnior) e João Pedro Silva, João Martins e Pedro Noronha (Manuel Dias Gomes), com destaque para os excelentes tércios de bandarilhas.

Com muitas caras conhecidas na bancada (que mais logo aqui vamos mostrar), com enorme ambiente e três quartos fortes da lotação preenchidos (um sucesso, a confirmar o grande esplendor que as corridas estão a ter este ano, com grande afluência de público sempre que se anunciam cartéis atractivos, como era este), a corrida decorreu em ritmo agradável, sem intervalo (ora bem!), dirigida com a usual competência por Marco Cardoso, que esteve ontem assessorado pelo médico veterinário José Luis da Cruz, com os toque a cargo do cornetim José Henriques - uma lenda!

Um único reparo, como atrás referi: ficou esquecida a chamada à praça do ganadeiro Manuel Veiga, que ontem era digno merecedor dessa honraria.

Ao início da corrida, guardou-se um respeitoso minuto de silêncio em memória de António José Santo (antigo funcionário da praça) e de Jesus Lourenço, ex-cabo dos Forcados de Vila Franca, que nos deixou esta semana, aos 80 anos - e cujas cerimónias fúnebres decorriam precisamente à hora da corrida.

Fotos M. Alvarenga

António Telles: lição de cátedra no quarto toiro da tarde
Moura Júnior: sinfonia de arte (premiada) no quinto toiro
Entrega, arte e o temple eterno: triunfo de Manuel Dias Gomes