quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Marcou a temporada: noite de euforia e apoteose ontem na Moita

António Ferrera toureou e fartou-se de tourear ontem na Moita, encheu as
medidas aos aficionados e saíu pela segunda vez em ombros pela porta grande
da praça "Daniel do Nascimento"
João Telles em noite magistral e a aquecer o ambiente para a grande competição
com Moura Jr. e Palha no próximo dia 27 em Lisboa
Ginés Marín encheu-se de brios e realizou uma grande faena ao último toiro
da noite, depois de ter passado quase despercebido no primeiro do seu lote
David Solo pegou à primeira o primeiro toiro da noite
A segunda pega foi executada à segunda por Fábio Silva, experiente forcado,
com uma primeira ajuda extraordinária


António Ferrera realizou ontem na Moita, ao quinto toiro de Ribeiro Telles, a grande faena desta temporada e saíu apoteoticamente em ombros na primeira corrida da Feira da Moita, depois de ter dado três aplaudidas voltas à arena e de o público ainda lhe ter pedido a quarta. João Telles marcou posição em duas lides magistrais e Ginés Marín respondeu à apoteose de Ferrera com uma grande faena ao último toiro da noite. A corrida da Moita foi, sem dúvida alguma, uma das grandes corridas desta temporada

Miguel Alvarenga - A praça "Daniel do Nascimento" registou ontem uma grande entrada de público que não chegou aos três quartos - mas andou lá muito perto. Essa louvável recuperação de público em relação aos anos anteriores foi a primeira nota positiva de uma grande noite que marcou esta temporada e constituiu, sem margem para dúvidas, uma primeira vitória do dinâmico empresário Ricardo Levesinho - que ontem contou com o apoio de António Nunes, a quem é justo também que aqui se deixe uma palavrav de louvor pelo empenho que pôs em trazer à Moita, via José Cutiño, dois figurões do toureio de Espanha.
A praça da Moita com público e de novo em alta, deixando assim enorme ambiente para a corrida à portuguesa de amanhã, foi, do ponto de vista empresarial, o facto relevante da corrida de ontem. Artisticamente, o espectáculo foi de um nível altíssimo e rodeado de um ambiente à antiga.
Os toiros da ganadaria Ribeiro Telles, de apresentação e trapio irrepreensível, apesar de terem pouca cara os lidados a pé, transmitiram, deram emoção e dentro da linha Murube que os caracteriza foram bons e proporcionaram triunfos inesquecíveis aos toureiros. Teria sido justíssima a volta do ganadero à praça em qualquer dos três toiros lidados na segunda parte.
António Ferrera já não bandarilha há uns meses e o facto de não ter preenchido esse tércio, que foi durante anos a sua grande imagem de marca, provocou alguns protestos por parte de aficionados provavelmente menos atentos e desconhecedores desta nova fase da carreira do matador. Mas Ferrera ontem estava na Moita para marcar a temporada e rapidamente superou a falha das bandarilhas.
O seu primeiro toiro, segundo da noite, tinha grande qualidade, mas pouca força. António Ferrera toureou-o superiormente e deu desde logo o mote para o que viria a ser, depois, no quinto, a grande noite de sonho de que toda a aficion ficou a falar e da saída aos ombros, pela segunda vez, pela porta grande da "Daniel do Nascimento".
Génio, e como todos os génios, com uma soberba dose de saudável loucura, Ferrera recuperou o estímulo este ano em Madrid, abrindo a porta grande de Las Ventas, depois de uma preocupante depressão que o levou, no ínicio do ano, a uma tentativa de suicídio e já em Junho em Badajoz indultou dois toiros em duas corridas e tudo isso fê-lo ressuscitar  e ganhar uma vida nova.
O toureiro que ontem se viu na Moita foi o novo Ferrera, consagrado e aclamado como figura do toureio em Sevilha e Madrid e agora também de novo em Portugal.
O quinto toiro de Ribeiro Telles entrou na arena cheio de gás, ia desarmando um burladero e mesmo assim, perante todo esse impacto, Ferrera recebeu-o de joelhos em terra com uma incrível "afarolada" e depois outra, assim como quem diz: "a noite hoje vai ser minha!". E foi mesmo.
Depois de razoavelmente preenchido o tércio de bandarilhas pelos seus peões de brega, o matador entrou disposto a sacar faena e a obrigar o toiro a investir na sua muleta mágica. De início, parecia o toiro ficar-se pelas meias investidas, mas depressa Ferrera lhe explicou que tinha que ir até ao fim. E toureou pausadamente, com arte e temple desmedidos. E toureou, e toureou e fartou-se de tourear, pode até ter ultrapassado o tempo, mas valeu a aficion do director de corrida Fábio Costa que não lhe mandou dar nenhum aviso e por ele ainda hoje ali estaria a tourear. Foi uma faena "do outro mundo", mandona, de um domínio completo, de arte e bonitos recortes, via-se que Ferrera estava a gosto e que se o deixassem e o toiro o permitisse, e permitiu-lhe tudo, ainda hoje ali estaria.
Toiro aplaudido no regresso aos currais e ambiente de verdadeira euforia na praça. Público de pé, a alegria estampada no rosto do toureiro, todos a aplaudir, todos a gritar "Torero! Torero!" e deu uma volta à arena e outra e ainda outra e sorridente recolheu à trincheira quando todo o público lhe exigia uma quarta volta.
Ginés Marín, uma das novas estrelas do toureio mundial, andou desconfiado com o terceiro toiro da noite, que tinha investidas bruscas, limitando-se a dar-lhe curtas séries de "derechazos" e abreviando a faena sem pena nem glória. Ninguém assobiou, mas também não se ouviu um aplauso. O director não lhe concedeu música e também não autorizou a volta à arena. Ao intervalo, Marín era uma desilusão.
No último toiro, outro exemplar de Ribeiro Telles de nota alta, apesar de, como os outros, ter pouca cara, Ginés Marín puxou de todos os seus galões, a tarefa não ia ser fácil depois do "faenão" de Ferrera, mas o jovem matador encheu-se brios e gritou bem alto que também estava ali.
Toureou maravilhosamente de capote, por "verónicas" em câmara lenta, magníficas. Brindou a faena a António Nunes e demonstrou então que não é por acaso que anda em Espanha nas bocas do mundo e tem lugar de destaque em todas as feiras.
Faena profunda, artística, pausada e de muito bom gosto, com apuntes de maravilha e rasgos de genialidade. O público entergou-se por fim, rendeu-se à arte de Marín e premiou-o muito justamente com duas voltas à arena da "Daniel do Nascimento".
A Moita de novo em alta e em grande e o toureio a pé numa noite de máximo esplendor. Noutros tempos, passaram por esta arena as maiores figuras do toureio mundial. No meu tempo lembro-me de aqui ver Palomo Linares, Manzanares, "Espartaco", "Niño de la Capea", Paco Ojeda e tantos mais, a par das grandes figuras nacionais, antes da praça, que era um dos palcos mais emblemáticos do toureio a pé, ter "adormecido". Ontem acordou por fim. Aleluia!
E agora, Telles. João defendia ontem em solitário, ao lado dos matadores espanhóis, a nossa arte do toureio a cavalo. Talvez a inclusão de um segundo cavaleiro (por que não Palha, que é o grande ausente de uma Feira onde triunfou no ano passado) se tivesse justificado e pudesse ter contribuído para uma enchente total nas bancadas, mas entendo na perfeição a opção do empresário Ricardo Levesinho, que apodera João Telles nesta temporada de máxima consagração e assim o quis destacar nesta noite primeira da Feira.
E acabou por não fazer falta mais nenhum cavaleiro. Competindo só com ele próprio, superando-se a todos os momentos, João Ribeiro Telles fez ontem jus ao figurão que é e à plena e verdadeira dimensão e magnitude do seu bom toureio. Está "montado que nem um leão" e moralizado que nem um herói.
Lide superior e triunfal ao primeiro toiro da noite, de pequeno porte, mas exigente e a pedir contas. E no quarto a praça veio abaixo. O toiro, o mais pesado e de maior transmissão, entrou em praça com uma "pata doida", João recebeu-o praticamente sem a ajuda dos bandarilheiros - os eficientes Nuno Oliveira e Duarte Alegrete -, aguentou as "cargas" sem pestanejar, viveu-se um momento de aflição quando o cavalo escorregou na cara do toiro e por pouco não foi derrubado, mas depressa João tomou as rédeas da situação e ali quem mandou foi ele.
O toiro continuava a pedir contas e Telles foi à luta com a garra e a raça costumeiras, citou-o de praça a praça, deu-lhe toda a prioridade, foi ao seu encontro no centro da arena e deixou ferros de emoção e valor em sortes a vencer o piton contrário ali num palmo de terreno, nos terrenos da verdade, no sítio onde os toureiros se destacam e marcam a diferença.
Para terminar em beleza foi buscar o fantástico cavalo preto "Ilusionista", de ferro Ortigão Costa, um dos grandes ases da actualidade e cravou dois ferros magistrais a entrar pelo toiro dentro em terrenos impossíveis, deixando o público todo em delírio. Mais emoção, maior risco e mais verdade são impossíveis. Grande João Telles!
Aqueceu, não haja dúvidas, para não dizer que deixou mesmo a escaldar, o grande ambiente que já existia para o emotivo confronto do próximo dia 27 no Campo Pequeno com João Moura Jr. e Francisco Palha. Vai ser uma noite de loucura!
Acompanhado do forcado Fábio Silva, que fez um pegão à segunda e do primeiro ajuda, que esteve enorme, e também dos campinos Janica e Café, deu uma volta à arena e depois mais outra, por exigência do público, com os dois forcado, indo ainda uma vez mais ao centro da arena receber com Fábio uma derradeira e calorosa ovação.
A primeira pega dos Amadores da Moita, sem dificuldades de maior, brindada ao presidente da Câmara da Moita, foi bem executada à primeira por David Solo. Nas duas, o grupo demonstrou coesão e eficácia nas ajudas.
E é tudo de uma noite que foi marcante. Das melhores da temporada. E de que se continuará a falar nos próximos dias.

Já a seguir não perca os melhores momentos - pela objectiva de Miguel Alvarenga.

Fotos M. Alvarenga