Irreverente, diferente e a marcar sempre a diferença a que ninguém consegue ser indiferente, Rui Fernandes marcou a noite de ontem pela verdade e emoção do seu bom toureio de alto risco |
Duarte Pinte reafirmou ontem os triunfos de 2018 e subiu de uma vez por todas e de forma indiscutível ao patamar sagrado das primeiras figuras. Olé, Toureiro bom! |
Cada um no seu estilo, frente a bravos, sérios e exigentes toiros do Dr. António Silva, António Telles, Rui Fernandes e Duarte Pinto deram ontem no Campo Pequeno a real dimensão do valor que lhes vai na alma e da arte que lhes corre no sangue. Houve um triunfador destacado? Houve três! E a ganadaria. E os heróicos forcados de Montemor e Vila Franca, que foram verdadeiros heróis de uma noite épica que fica nos anais da história do Campo Pequeno. A corrida foi das melhores dos últimos tempos. Só foi pena a praça não estar cheia. Três quartos.
Miguel Alvarenga - António Ribeiro Telles é um Mestre mais Mestre todos os dias e está como o Vinho do Porto, melhor com a idade, maior com a grandeza e o aprumo do seu toureio clássico. Rui Fernandes é toureiro de outros campeonatos. Não há, não pode haver, toureio antigo e toureio moderno. Há, sim, toureio bom e toureio mau. Ele, na sua eterna irreverência, é um vulcão em permanente ebulição e ontem teve uma noite de esplendor e consagração - no seu estilo, muito seu, muito peculiar, muito cheio de emoção. Duarte Pinto é, apenas e só, um dos melhores e mais puros cavaleiros que têm aparecido nos últimos anos - pureza no toureio que pratica, verdade na rectidão com que vai aos toiros e entra por eles dentro, emoção e grandeza na forma como sente e interpreta a nobre e portuguesíssima arte de bem tourear a cavalo.
Os três viveram ontem na primeira nocturna da temporada do Campo Pequeno momentos de suprema glória. E acima de tudo, há que se lhes tirar o chapéu por terem ido "à luta" com aqueles toiros - toiros que muitas figurinhas de pacotilha se dão ao luxo - e à vergonha - de recusar. Toiros a que eles, os três, responderam com o mais elevado dos profissionalismos e a mais louvável das grandezas. Só por isso, podem-me chamar exagerado, mereciam ter saído em ombros pela porta grande.
Pela porta grande deveria ter saído também a ganadeira Sofia Silva Lapa, mas ficou o reconhecimento do público pela casta, pela bravura, pela exigência e pela seriedade dos toiros da ganadaria fundada por seu avô, o Dr. António Silva, de irrepreensível apresentação, na maioria aplaudidos mal entraram na arena, nas duas ovacionadas - e merecidas - voltas que deu à arena, a última também com o maioral "Janica" em praça, consagração plena da ganadaria numa noite onde a verdade e a seriedade do toiro falaram bem alto. O sexto, "Esmeraldo" se chamava e pesou 604 quilos, voltou para o campo para semental.
E aos ombros deveriam ter saído também os forcados de Montemor e Vila Franca, os cabos pelo menos, em representação do estoicismo, do heróismo, da valentia e da arte que todos eles deixaram ontem patente naquela arena. Arena de triunfos grandes.
Podia a reportagem (odeio chamar-lhe crónica) ficar por aqui, que já estava tudo dito sobre a noite que ontem ficou na nossa História e nas nossas memórias. Foi, repito, uma das maiores corridas que vi nos últimos tempos. Mas vou contar mais alguns detalhes.
Eternamente António
Os anos passam, tantos já (não te estou a chamar velho, António) e António Ribeiro Telles é cada dia mais Maestro. A forma como ontem deu a volta ao primeiro toiro da noite, o mais complicado dos seis, lidando-o e toureando-o verdadeiramente à maneira antiga, demonstra bem a sapiência, a experiência e o profissionalismo deste enorme toureiro. Chama-se ao que ele fez saber e maestria. Muitos teriam andado ali a noite inteira "às aranhas" sem argumentos para lidar aquele toiro. António transformou o difícil em fácil. Agigantou-se e quase ninguém deu por isso que o toiro fazia perder a paciência a um santo.
No quarto, um toiro sério, exigente e bravo, António Ribeiro Telles abriu os compêndios todos e deu uma lição tremeda de bom toureio a cavalo destacando a essência do seu raro perfume de maestria - e de verdade toureira. Que grande cavaleiro! Eternamente António. Mestre de todos os Mestres.
E não são precisas mais palavras para contar - e cantar - mais este triunfo enorme de quem tão bem toureia e tanta classe deixa patente sempre que se veste de toureiro e honra os pregaminhos de tão histórica e ilustre dinastia de que foi pilar maior o sempre lembrado Mestre David, Senhor seu Pai.
Rui ou a história de um vencedor
Rui Fernandes joga noutros campeonatos, que não propriamente os do classicismo. Veio do nada, sem apelido sonante e sem família toureira. Há quem goste do seu estilo de toureio, quem não goste e até quem o assobie, como ontem injustamente aconteceu quando os dois forcados de Montemor ficaram em praça e se lhes exigia uma segunda volta e eles, educadamente, fizeram questão de ter de novo o Rui a seu lado. E ele, com senhorio, foi ao meio da arena, entregou-lhes o tricórnio, bateu-lhes palmas e foi-se embora, dando assim um estaladão de luva branca àqueles (poucos) que protestavam o seu regresso à arena. À arena, onde ainda por cima acabara de rubricar um triunfo monumental.
Pode-se gostar ou não, repito, mas a realidade é que ninguém consegue, mesmo que tente, ficar indiferente ao toureio de emoção, emoção que se chama sobretudo verdade e risco, que o Rui pratica. Em vinte anos de alternativa, consagrou-se pela diferença que marcou sempre. E ontem reafirmou essa diferença.
Embalou no segundo toiro da noite, sem redondear um grande triunfo, para o êxito que viria a ser a lide do quinto toiro. Mesmo assim, no seu primeiro, deixou bem claro que ontem estava ali para marcar a noite.
A sua segunda lide foi uma sinfonia de emoções. Daquelas que param corações. Toureio de estilo arrojado, onde a seriedade impera e a irreverência marca pontos que raiam a genialidade e aclamam a consagração. Foi a história de um vencedor que ele ontem escreveu. Toureiro único, diferente - e grande.
Duarte ou a pureza absoluta
Duarte Pinto tem no sangue a arte e a classe que foram apanágios de um toureiro que foi grande e sóbrio. Seu pai, Emídio Pinto. No ano passado e depois de muitos outros anos a dizer que um dia haveria de ser assim, teve a sua noite sonhada nesta mesma arena do Campo Pequeno - e ontem reafirmou esse enorme triunfo, sobretudo no último toiro da noite, alcançando de uma vez por todas e de forma indiscutível o estatuto de primeira figura. E isso, já ninguém lhe tira. É, de facto, um dos grandes toureiros dos últimos anos.
Os compridos, de praça a praça, em ambos os toiros, a dar toda a prioridade aos oponentes, a ir recto para a cara deles e a cravar no sítio da verdade, pisando a linha de fogo, reunindo ao estribo, rematando com sobriedade, foram monumentos - e momentos muito sérios - de toureio a cavalo.
Os quatro curtos que cravou no seu primeiro toiro não mereciam só música (que a nova directora lhe negou, inexplicavelmente), mereciam uma orquesta sinfónica.
No último toiro da noite, o "Esmeraldo" que foi "indultado", Duarte esteve simplesmente enorme. Foi a pureza absoluta do toureio que ele ali deixou escrita.
A história de que um dia haveria de chegar ao posto em que agora está, essa, escreveu-a o Duarte há muito. Agora, simplesmente a consagrou. E a eternizou a letras de ouro.
Segue-se o concurso de ganadarias históricas - e duras - em Vila Franca a 5 de Maio, os Castros no Montijo a 11. Duarte não escolhe toiros. E marca este seu arranque de temporada com as ganadarias que trazem verdade e emoção - e risco - à Festa. É, insisto, um dos maiores toureiros do momento!
Muito bem as quadrilhas dos três cavaleiros na lide dos duros toiros de Silva, com destaque especial para as intervenções de João Ribeiro "Curro", António Telles Bastos, Duarte Alegrete e João Ferreira.
Noite épica dos Forcados
Os Forcados Amadores de Montemor e Amadores de Vila Franca foram também grandes triunfadores - heróis, melhor dizendo - da primeira grande noite do Campo Pequeno. Também não houve aqui um grupo triunfador. Houve dois.
Foi grande e tecnicamente perfeita a primeira pega de Francisco Bissaya Barreto; um portento de raça e de querer a terceira, de João da Câmara; um colosso a quinta, de Francisco Maria Borges, que forcadão, Deus meu, com uma primeira ajuda incrível de António Cortes Pena Monteiro, que depois o acompanhou nas duas voltas que deram à arena, a segunda só eles, com o público todo de pé. As duas primeiras pegas foram consumadas à primeira, a de Borges à segunda. O grupo esteve grande a ajudar, "à Montemor" e Francisco Godinho e Manuel Vacas de Carvalho destacaram-se a rabejar.
Grande foi também a segunda pega da noite, primeira dos vilafranquenses, à primeira, pelo consagrado David Moreira; enorme a quarta, à primeira também, por intermédio do valoroso Rui Godinho; histórica a última, à terceira, parece impossível como foi concretizada, por Francisco Faria, que técnica, que vontade e que par de braços. Saíu para a enfermaria e dali para o hospital, bem como o ajuda André Matos, não havendo contudo e segundo o cabo Vasco Pereira, a registar quaisquer lesões graves em nenhum deles. Que recuperem rápido - e bem.
A rabejar pelos de Vila Franca, destacou-se, como sempre, a raça sem fim do grande Carlos Silva.
A estreia da directora Lara
Envolta em alguma (desnecessária) polémica, pela oposição (incompreensível) dos (antigos) directores de corrida à nomeação dos novos, estreou-se ontem no Campo Pequeno a nova delegada técnica da IGAC, Lara Gregório de Oliveira, advogada, de 34 anos, filha do ganadeiro Francisco Gregório de Oliveira. Não terá sido, rectificaram-me vários amigos, a primeira vez no mundo que uma mulher dirigiu uma corrida de toiros, dizem que já aconteceu em Espanha e eu acredito. Mas em Portugal, foi.
E se tudo fez com correcção, com exigência e com rigor - há que reconhecer que, apesar de uma única nódoa negra, passou no teste -, é preciso explicar à Lara que o Duarte Pinto merecia - e se merecia! - música no seu primeiro toiro. O Campo Pequeno tem que ser um palco de respeito, não é a Feira Popular, isso todos reconhecemos, a música tem que ser concedida com critério e não por dá cá aquela palha (ou aquele ferro...), mas a nega de Lara a Duarte foi imperdoável. E mesmo inexplicável. Estava desatenta? De resto, mais nada a apontar-lhe. Esteve assessorada pelo experiente médico veterinário Dr. Jorge Moreira da Silva, que conversou muito com ela ao longo da corrida e que talvez devesse tê-la aconselhado melhor nessa única falha cometida... vá-se lá entender porquê.
No camarote da PróToiro assistiu à corrida Francisco Rodrigues dos Santos, o líder da Juventude Popular (CDS/PP), a quem os Forcados de Vila Franca brindaram a última pega da noite.
Ao início da corrida, nas cortesias, foi guardado um respeitoso minuto de silêncio em memória do ganadeiro José Pinto Barreiros, do forcado João Franco, do bandarilheiro César Marinho, do fotógrafo Duarte Chaparreiro e do embolador João Lázaro, recentemente falecidos.
Toiros à 6ª feira... preso por ter cão...
A praça ontem não encheu - e devia ter enchido. O cartel, digam o que disserem, estava bem rematado e com composição intocável. Era para ter sido Ventura nesta primeira corrida do ano, as circunstâncias obrigaram a uma outra opção, mas ninguém pode negar que António Telles e Rui Fernandes são duas primeiríssimas figuras de nomeada e que Duarte Pinto estava neste primeiro elenco do ano, porque só tinha mesmo que estar depois de ter sido o triunfador de 2018 nesta praça. Os forcados eram dos melhores e os toiros constituiam um verdadeiro apelo à seriedade, à emoção e à verdade.
O público não encheu o Campo Pequeno porquê? Einstein que o decifre, que eu não consigo.
Muitos defendem que as corridas em Lisboa deviam ser à sexta. como esta foi, porque à quinta é complicado por ser dia de trabalho a seguir, etc., etc., se bem que essa tradição já venha de há mais de 125 anos.
As corridas à sexta são "preso por ter cão e preso por o não ter". Véspera de fim-de-semana, as pessoas abandonam Lisboa e, ainda para mais, estamos nas férias da Páscoa. Em suma, entre quinta e sexta, venha o Diabo e escolha. Mas se calhar, mais vale manter a tradição. Da quinta-feira.
E a tradição do intervalo é que deveria voltar. Perdem-se quinze minutos? E depois? Morre alguém por isso. Dizia-se - e justificava-se com isso o fim do intervalo - que quem vem de fora só chegava a casa às cinco da matina. Assim chegam um quarto para a cinco. Dormem mais quinze minutos... Será significativo para justicar suprimir a "solenidade" do intervalo?
Assim como assim, ele existe na mesma - e sempre, quer queiram, quer não queiram. A empresa bem anuncia que "a corrida segue sem intervalo"... e o público ralado... ontem, quando diziam isso, o pessoal debandava pelas escadas abaixo, como de costume, rumo aos bares e às casas de banho (que são tão escassas...).
Enfim, reveja-se isso do intervalo. E pronto, tenho dito. Isto foi só um àparte.
Resumindo e concluindo: mesmo sem intevalo institucionalizado, mas com intervalo forçado, a noite de ontem foi enorme. E não me parece que tão cedo vejamos uma corrida assim tão boa.
A seguir não perca: todas as pega, uma a uma, pela objectiva implacável de Maria João Mil-Homens. E amanhã: todas as fotos dos Famosos.
Fotos Maria Mil-Homens