domingo, 9 de fevereiro de 2020

Caparica também é terra onde nascem toureiros e ontem nasceu mais um "loirinho" a quem já não vão chamar "Lady Di"

Rui Fernandes veio da Caparica, da terra do sol e do mar e dos pescadores e das
férias de Verão...
... e depressa alcançou a fama e a glória saindo aos ombros dos principais palcos
da tauromaquia mundial
Pai e filho comigo em 2011 numa entrevista ao "Farpas"
Rui com o sobrinho ao colo, ainda bebé
Este foi o ferro da tarde ontem na Granja. Duarte Fernandes é o novo "loirinho"
da Festa e chega ao mundo da tauromaquia duas décadas depois de também
por cá ter aparecido e feito história seu tio, Rui Fernandes


A Caparica do sol e das praias, terra improvável para ser berço de toureiros, já o foi de muitos e ontem consagrou-se mais um: Duarte Fernandes, sobrinho de Rui Fernandes, foi aprovado com distinção na sua prova para cavaleiro praticante no festival que se celebrou na praça da alentejana vila da Granja. Nasceu mais uma estrela vinda de uma terra que não é o Ribatejo nem o Alentejo, mas que também é terra de toureiros - e bons

Miguel Alvarenga - Falar da Costa da Caparica não é só falar do sol, do mar, das praias, do peixe e do marisco, dos pescadores e do turismo. Há muito que é também falar de toiros e de cavalos. E de toureiros que ali nasceram, ali têm as suas quintas e dali partiram para o mundo da tauromaquia, como os outros que vieram de lugares mais próprios a essas vivências e a essas tradições e que também conquistaram a glória pelos quatro cantos do mundo.
Foi ali, mais concretamente para os lados da Cova da Piedade, que se radicou como filho adoptivo e viveu os últimos anos da sua vida, até que um toiro lha roubou no ano de 1966 na arena mítica do Campo Pequeno, o sempre lembrado Joaquim José Correia, que era de Évora e todos conheciam por "Quim-Zé", 21 anos de vida desfeitos quando já era promissora figura do toureio e na praça lisboeta emprestava desinteressadamente a sua arte e o seu valor a uma causa solidária num festival taurino de beneficência.
Foi ali também que nasceu e viveu os seus primeiros anos Paulo Caetano, que figura maior deste mundo tauromáquico se haveria de consagrar e depois ao mar virou as costas, e foi esse mesmo o título do livro biográfico que um dia escreveu, trocando o sol e o mar pela tranquilidade da planície alentejana, a de Monforte, para onde foi viver e casou e onde já nasceu seu filho João, também ele destacada figura do mundo do toureio a cavalo.
Daquela Caparica do Verão, do azul do mar e das praias, vieram também para a arte do toureio equestre muitos outros que, não tendo propriamente alcançado a glória e o estrelato dos anteriormente referidos, cumpriram com empenho e dignidade as suas carreiras, ainda que mais curtas, casos de José Moita da Cruz, de Rui Rosado, de Carlos Arruda, de Túlio de Portugal. E também alguns bandarilheiros ali se fizeram e de todos o que mais longe chegou foi Albino Fernandes, a provar que nem só nas regiões tradicionais nasceram toureiros.
O caso mais recente, tão recente que ontem mesmo fez na praça da Granja a prova para cavaleiro praticante, é o do jovem cavaleiro Duarte Fernandes, o segundo "loirinho" que já transformou em dinastia a epopeia de seu tio Rui Fernandes, toureiro que veio do nada, do nada porque não tinha nome célebre nem antecedentes taurinos na família para lá de um pai exemplarmente aficionado e em vinte anos de carreira se consagrou como um dos maiores desta arte, triunfando e consagrando o seu nome e o seu desmedido valor nos principais palcos mundiais e ao lado dos maiores desta difícil profissão que é a de ser toureiro.
Ontem o Duarte fez-me lembrar o Rui dos primeiros tempos, quando um dia o meu amigo Luis Miguel Pombeiro me chamou para ir ver na outra banda dois miúdos que toureavam a cavalo e que, dizia ele, eram tão bons como os que nasciam no Ribatejo e no Alentejo e estes tinham nascido na praia. Chamavam-se Túlio de Portugal e Rui Fernandes - e eram os dois realmente bons, como depois pude constatar. Túlio acabou por não levar tão longe a sua história, porque outros projectos o chamaram depois da morte de seu pai, mas nos anos, poucos, em que por cá andou elevou bem alto a afirmação de que na Caparica também nasceram toureiros dos bons.
Rui Fernandes, esse, foi longe e em pouco tempo se afirmou como um dos últimos casos importantes do nosso toureio a cavalo. E eu orgulho-me de ter sido um dos primeiros que nele acreditou, quanto outros o procuravam descredibilizar e até ridicularizar chamando-lhe (lembram-se?) "Lady Di". O saudoso Ricardo Chibanga também nele acreditou e o fartou de colocar nos cartéis das corridas que, lá para o norte, realizava nas suas praças desmontáveis.
E um dia telefonou-me o meu amigo Gonçalo da Câmara Pereira (ainda há pouco ele lembrou isso numa entrevista televisiva), estava a organizar uma Tourada Real em Vila Viçosa e faltava-lhe um cavaleiro para serem seis, quem havia de ser, perguntou-me. "Põe o Rui Fernandes!", disse eu. "Quem?...", interrogou-me o Gonçalo, meio espantado com um nome de que nunca tinha ouvido falar. E pôs.
Falei ao saudoso empresário e meu eterno amigo Manuel Gonçalves e disse-lhe que tinha que ir comigo a Vila Viçosa ver um toureiro novo que eu tinha a certeza que ia dar muito que falar. E fomos. Veio deslumbrado, ele que não sendo propriamente um grande aficionado, era acima de tudo um grande empresário do espectáculo e vivia muitos anos à frente do tempo. Também acreditou no Rui e pô-lo desde logo em muitas das suas corridas. E Virgílio da Palma Fialho, que também fora alertado para estar nessa noite real em Vila Viçosa, depressa o contratou, não havia tempo a perder, para tomar a alternativa no Campo Pequeno na sua Corrida da Rádio, que era ao tempo uma das maiores noites da temporada nacional, com João Moura e Pablo Hermoso.
E assim se lançou e assim nasceu uma estrela. O resto foi o Rui que fez, à custa do seu trabalho, do seu esforço, do seu enorme valor e também, não se pode esquecer, do grande apoio de seu pai, também Rui de nome, pilar mais importante e mais decisivo em todas as horas fáceis e difíceis desses tempos primeiros do seu arranque rumo à glória que é o trampolim que consagra os toureiros como figuras e depois os torna diferentes dos demais.
Lembrei-me de tudo isto quando ontem vi pela primeira vez tourear o Duarte, seu sobrinho, parece que o filme andou para trás e que tudo está de novo a começar. Na Granja deixou ver que o registo é o mesmo, igual ao do tio, cara de menino traquinas, coração de toureiro grande, a fazer tudo com segurança, maturiadade rara e imprópria de uma idade tão nova, a demonstrar estranha intuição e valentia de gigante, que importante foi aquele último ferro, em terrenos impossíveis, os terrenos que "dão dinheiro" porque marcam a diferença, e mais um ferro lhe pediram, todos de pé, em clima de euforia, e ele foi embora tranquilo, seguro e sorridente, missão cumprida.
No ano passado ganhou em França o mais ambicionado troféu que todos os anos os cavaleiros disputam em Mejanes, o Rojão de Ouro, pelo qual este ano vai outra vez lutar ao lado de seu tio e do grande Diego Ventura. E depois de ontem, a portas abriram-se de par em par para o jovem Duarte, tal como há mais de vinte anos elas se abriram em Vila Viçosa para o Rui.
"Parece-me que o meu neto tem jeitinho...", disse-me no final o Rui pai, com aquele seu sorriso "bacano" e malandreco, cigarro ao canto da boca, olhos a brilhar, pareceram-me meio húmidos da comoção, ao constatar que vinte anos depois tudo se volta a repetir com a mesma intensidade e principalmente com as mesmas certezas.
Chegou um novo "loirinho" à Festa. E a este já não vão chamar "Lady Di".

Fotos D.R. e M. Alvarenga