Emoção, saudade e lágrimas |
No quarto toiro da noite, Moura voltou atrás no tempo, tinha outra vez vinte anos e quando ele toureia como ontem toureou, Deus meu, vem tudo abaixo! |
O toureio bonito de Cayetano honrou ontem no Campo Pequeno, também, as memórias e as lembranças de seu avô António Ordoñez e de seu pai, o eterno "Paquirri", que foi ídolo maior nesta praça |
Marcos Bastinhas, uma força da natureza como o pai, viveu ontem no Campo Pequeno a noite maior da sua carreira, saindo em glória e aos ombros pela porta grande, apenas e só pelo seu mérito e sem favor algum, depois de duas lides magistrais e marcantes. Moura, no quarto toiro, parecia que tinha outra vez vinte anos. E Cayetano honrou as memórias de seu avô António Ordoñez e de seu pai "Paquirri" triunfando numa praça em que eles tiveram a glória de ser ídolos. Lisboa cumpriu uma vez mais a sina de praça torista numa noite de triunfo da ganadaria Varela Crujo com dois toiros "indultados". Foi tudo fantástico e emotivo. Só faltou mais público. E Bastinhas merecia ontem praça cheia!
Miguel Alvarenga - A importância de se chamar Bastinhas. Foi isso, e tudo o mais, que o Marcos ontem deixou escrito na praça do Campo Pequeno. Disse-me esta manhã que "já foi dar um beijo" a seu pai e a seu avô. E que felizes eles hão-de estar hoje, depois da noite de glória que ele protagonizou ontem em Lisboa!
A noite era de emoções, de saudade e recordações. Pela praça pairou a memória desse enorme toureiro e grandioso homem que foi Joaquim Bastinhas. Houve lágrimas, houve alegrias, houve tudo, mas houve principalmente Marcos Bastinhas. Que ontem a todos deu a verdadeira dimensão do seu toureio, a forma como sente e interpreta essa arte em que seu pai foi dos maiores mestres, a grandeza com que se impôs num cenário que não era fácil, num momento em que voltava à primeira praça do país para dizer bem alto que o nome Bastinhas vai continuar com a força de antes.
Vinha decidido o Marcos, decidido a dizer-nos isso tudo. A provar, a afirmar-se e a consagrar-se como primeira figura. Calculo o que lhe ia na alma. Vi-lhe as lágrimas de emoção. Vimos todos. Quando no final despiu a casaca (calma, que não se despediu!) e a deixou ali no centro da arena, junto do tricórnio e das flores, assim como quem diz: "Toma, pai, é para ti, é a minha homenagem", estava cumprido o sonho, o sonho do triunfo, o sonho de ser maior, o sonho de vingar e de lembrar naquela mesma arena todas as noites de glória do nosso querido Joaquim Bastinhas.
E depois saíu em ombros pela porta grande, a porta da glória maior que eterniza o valor e a raça dos toureiros grandes. E não saíu em ombros por ser o filho de Bastinhas. E não saíu em ombros por favor nenhum. Saíu em glória pelos seus méritos - tantos - próprios, pelas duas lides empolgantes que viveu, pela garra com que se fez ontem aos toiros e foi buscar o primeiro à porta dos sustos e foi esperar o segundo à porta da gaiola, no meio da arena se ficou, calmo e tranquilo como se nada fosse e depois aguentou a investida brutal e franca do bravíssimo toiro de Varela Crujo e pôs aquele ferro do outro mundo, de poder a poder, a aguentar como só os toureiros de coração gigante aguentam, templando depois a sua investida, parando-o outra vez no centro da arena e o público explodiu, levantou-se da bancada, não parou mais de bater palmas.
E toureou como os maiores. Lidou os dois toiros com suprema maestria, esteve a gosto, emocionou em ferros de parar corações, pisando a linha de fogo, não é para qualquer um e seu pai fez o mesmo anos a fio e por isso se tornou rei e o elegeram como o mais popular e o mais querido e acarinhado toureiro de que há memória nos últimos anos.
Marcos e a importância de se chamar Bastinhas marcaram ontem a noite do Campo Pequeno. Foi a raça, foram as ganas, foi a arte que ali escreveu e a atitude com que ali homenageou a memória de seu pai e ao mesmo tempo virou a página e nos provou que o nome Bastinhas vai seguir com o fulgor de sempre, foi tudo isso que fez da noite de ontem a noite grande do Marcos.
E depois de sair em ombros pela porta grande não mais o largaram à porta da praça, junto da sua carrinha, eram fotos, eram autógrafos, e ele de lágrimas nos olhos, lágrimas que eram de saudade, mas que eram principalmente de alegria, de alegria pelas ovações que do céu deve ontem ter ouvido, estou a imaginar o Bastinhas, o Emílio e todos os que lá do alto assistiram e vibraram e enlouqueceram com a apoteose do Marcos aqui na terra, aqui na praça dos êxitos, tantos, de seu pai.
E João Moura? E o Maestro? Sempre surpreendente, sempre inovador, sempre a tratar os toiros por tu. O primeiro toiro da noite foi a fava da corrida, mansote, de investidas pouco francas, mas que tem isso a ver quando em praça está um Toureiro como Moura?
No quarto, lide brindada a Rivera Ordoñez, foi-se como um herói à porta da gaiola e nós a pensarmos que tinha perdido a cabeça, que estava doido, qual quê, tinha mas era vinte anos outra vez e a lide foi qualquer coisa de fantástico, teve tudo de antológica, uma actuação de cátedra à Moura antigo, antigo nada, emendo, à Moura de sempre, que quando ele abre o livro, e ontem abriu-o, não há nenhum que lhe chegue aos calcanhares e continua a ser ainda o primeiro. O toiro esperava e Moura investiu ele, de praça a praça, como nos tempos de euforia, provocando-o, quarteando-se ali num palmo arrepiante de terreno, entrando por ele dentro, cravando com emoção, lidando com maestria e sem tempos mortos, empolgando, ensinando, provando o que não é preciso provar e todos já sabemos, nunca ninguém toureou tão bem como ele toureia!
Cayetano Rivera Ordoñez fazia a sua estreia em Portugal com o peso de estar numa praça que idolatrou seu avô António Ordoñez, aplaudiu seu tio Luis Miguel Dominguín e fez de seu pai Francisco Rivera "Paquirri" um dos toureiros mais importantes e mais queridos que por ali passaram nos anos 60 e 70.
Houve quem criticasse, há sempre quem não esteja de acordo, a sua inclusão neste cartel, defendendo que uma homenagem a Bastinhas tinha que ter um elenco de seis cavaleiros e que terá sido a falta de um cartel assim que levou a quem apenas meia praça se tivesse registado ontem no Campo Pequeno. Em Elvas vai-se homenagear em Setembro a memória de Bastinhas com duas grandes corridas, uma com Marcos frente a seis toiros e outra com seis cavaleiros do seu tempo e outra vez Marcos. Em Lisboa era diferente, o espírito era outro, Cayetano é uma estrela do toureio e não estou contra o cartel de ontem. Acredito, contudo, que outro formato (seis cavaleiros) podia ter trazido mais gente e Bastinhas merecia ter tido praça cheia. Esse facto, a falta de uma enchente, terá sido o único senão de uma noite que foi grande e foi importante. E onde Cayetano esteve à altura.
Deu um toque da sua arte e do seu toureio de bom gosto no terceiro da noite, mas foi no último que superou tudo e demonstrou em pleno que também não é figura do toureio só por ser filho de "Paquirri".
Bravo, codicioso, o toiro de Varela Crujo - também "indultado" - pouco lhe permitiu com o capote. O tércio de bandarilhas, ao contrário do anterior, foi bem executado pela sua quadrilha e depois Cayetano iniciou a faena de muleta de joelhos em terra, demonstrando atitude e vontade. O toiro cresceu, o director tardou a mandar tocar a banda e o matador bordou o toureio numa bonita e variada faena, em que parou, templou e mandou, impondo a sua técnica, a sua arte e a decisão com que estava ali de também ele ser grande na praça onde seu pai foi ídolo.
Triunfo importante de Cayetano Rivera Ordoñez numa corrida em que decididamente não esteve a mais, antes pelo contrário.
Os forcados Amadores de Portalegre pegaram os seus dois toiros à segunda por intermédio de Ricardo Almeida e João Fragoso. Os Amadores da Chamusca fizeram a sua primeira pega à segunda, consumada por Francisco Borges e depois Bernardo Borges fechou praça com a grande pega da noite ao quinto toiro da corrida. Ontem houve toiros e houve toureiros e no campo dos forcados, em noite de fraco brilhantismo, houve Bernardo Borges!
Continuou a não haver intervalo, mas as pessoas continuaram a celebrá-lo na mesma, indiferentes a essa medida contra a qual continuo a ser o mais contra possível. O intervalo faz falta, o intervalo era um dos momentos solenes das corridas, e não é por os alentejanos chegarem quinze minutos mais cedo a casa que se resolve alguma coisa, preocupem-se antes com coisas muito mais sérias e muito mais importantes...
Ao início da corrida, na arena e na presença da Família Bastinhas e de todos os intervenientes no espectáculo, Paulo Pereira leu um emotivo texto a lembrar a figura única e inesquecível de Joaquim Bastinhas e foi exibida a placa que está já colocada no corredor da praça, alusiva a esta noite de homenagem.
Ricardo Dias, novo director de corrida, desempenhou ontem a sua primeira missão na praça do Campo Pequeno com rigor e afición, apenas tendo pecado por tardar em conceder música a Cayetano no último toiro. Mas lá se decidiu e como mais vale tarde que nunca...
A quarta corrida da temporada lisboeta afinou pelo mesmo diapasão de toiros bons e a investirem, a ganadaria Varela Crujo triunfou, o ganadero deu merecida volta no quinto toiro, esse e o sexto foram "indultados", Moura voltou a deslumbrar como se tivesse recuado no tempo, Cayetano marcou pela bonita arte do seu toureio e Marcos Bastinhas foi o triunfador maior de uma jornada de glória que o consagrou em definitivo como figura do toureio a cavalo (nunca tive dúvidas!) e o levou depois em ombros pela porta grande acarinhado e aplaudido por todos - como era normal acontecer sempre que se anunciava seu pai. Prestou-lhe a maior das homenagens. E rescreveu na História da Tauromaquia actual, outra vez com letras de ouro, esse carismático e emblemático apelido que nos recorda tudo e tanta coisa. Ainda e sempre, Bastinhas!
Fotos Maria Mil-Homens