quarta-feira, 25 de abril de 2012

Mais um artigo de André Cunha!




E porque a tauromaquia não se faz apenas de Corridas de Touros, aqui fica um artigo em escrita popular, relacionado com as tão carismáticas Touradas à Corda, eventos taurinos com origem na Ilha Terceira mas que há muito quebrou fronteiras e se enraizou noutras ilhas.

 Eles andem aí!

André Cunha - De cima das gaiolas alguém faz sinal ao velhote que passou a tarde a mascar tabaco, a incandescente ponta do cigarro acende o rastilho e lá vai a cana rompendo céu. Bem no alto, valentes estrondos ecoam longe, são lançados os últimos foguetes apalavrados, sinal de que toiro no caminho só para o ano. Cá em baixo fica o intenso cheiro a enxofre, uma nuvem de fumo paira sobre a multidão que enche o arraial, é "povo cmá bicho"(1). Com semblante enfadonho, homens de casaco às costas e mulheres com as malas ao ombro deixam os seus postos que já ocupavam a algumas horas. A tourada à corda acabou, mas no meio do desgosto alguns rasgam sorrisos e dizem que "pró ano há mais!"
Dito e feito, a promessa será cumprida. Não tarda nada e os reis do mato regressam com baterias recarregadas aos arraiais da região (sim, porque mesmo tendo maior expressão na Ilha Terceira, as touradas à corda expandiram-se um pouco por todas as ilhas), para nova temporada da mais tradicional e carismática festa popular "made in Azores".
Outrora, o contentamento chegava com um simples saco de "cândins" e "gamas"(2) da América. Hoje as emoções são mais fortes e a excitação surge com a palavra toiro. Com o aproximar de nova época, sempre marcada para o Dia do Trabalhador (1 de Maio), há quem já trabalhe arduamente para que as primeiras touradas sejam em grande e para que tudo decorra pelo melhor.
Na freguesia, os olfactos mais apurados dão conta de que o "Manel das Pipocas" ligou a velhinha máquina de fazer "freiras"(3), já tem o amendoim ao sol e já torrou as favas. O "Joaquim da Burra" tapa uma parede de pedra do seu cerrado de milho, que havia sido "esburralhada"(4) dias antes por uma égua parida, mesmo sabendo que algum toiro mais saltador a volte a botar em baixo. Trabalhadores da junta cortam a relva e dão uma mão de tinta na Casa do Povo. O "Ti Chico" também dá uns retoques na sua casa e retelha o alpendre, enquanto o vizinho aproveita para caiar as suas paredes, pois espera a chegada de parentes do estrangeiro para as Festas do Espirito Santo. O "Pedrinho Ripas" só vê pregos e madeira à frente, prepara cancelas e tapadas por medida, para colocar no arraial. O pessoal da comissão faz matança, mata uma vaca e outros vão para o mar. Quer-se carne nova e tenrinha para as bifanas, torresmos frescos e bem amanhados, chicharros fritos e lapas do calhau.
Desta forma, é fácil perceber que a organização de uma tourada não se restringe apenas ao dia da própria tourada, pelo contrário, começa muito antes e envolve muita gente pelas mais diversas razoes, que com dedicação e afinco primam para que tudo esteja preparado para o dia dos toiros. Não podemos deixar de louvar o trabalho de bastidores praticado pelos ganadeiros, pastores e todos os colaboradores, visto que sem eles nada disto era possível (terão merecida atenção futuramente). Depois do trabalho vem a recompensa, a ansiedade aumenta com o aproximar do 1 de Maio e uma pergunta repete-se: " - Vais aos toiros pa terça?"
De cima das gaiolas alguém faz sinal ao mesmo velhote, que a 15 de Outubro do ano transacto, passou a tarde a mascar tabaco. A incandescente ponta do cigarro volta a acender o rastilho e lá vai a cana rompendo céu. Bem no alto, um valente estrondo faz estremecer qualquer um, acaba de ser lançado o foguete, sinal de que toiro está prestes a pisar o alcatrão. Cá em baixo reina um burburinho, hormonas nervosas e corações palpitantes. Toiros de corda, sejam bem-vindos... "Eles andem aí!"

(1) Muita gente; (2) Rebuçados e pastilhas elásticas; (3) Pipocas; (4) Derrubada.

Fotos D.R.