segunda-feira, 6 de junho de 2022

Santarém: na tarde de António, apoteose de Rui Fernandes calou protestos dos "puritanos" e arte de Moura aqueceu o público no último toiro

Público de pé à passagem do Mestre na tarde da reaparição

Miguel Alvarenga - Tínhamos saudades daqueles ferros com a sua marca, saudades, muitas, da classe da sua brega, da arte da sua maestria. António Ribeiro Telles reapareceu ontem em Santarém depois de quase um ano sem tourear em público, pela gravíssima colhida que o deixou entre a vida e a morte, ocorrida a 15 de Agosto em Reguengos de Monsaraz. Muitos não acreditaram que o dia de ontem viesse a acontecer, naqueles tempos de angústia em que o António esteve em coma. Mas Deus permitiu-lhe que nos voltasse a dar a alegria de o ver tourear de novo.

O público recebeu-o com uma calorosa, emotiva e interminável ovação, mal o António entrou em praça. Imagino o que sentiu no coração e na alma. Depois, o director de corrida Manuel Gama mandou que a Banda tocasse enquanto ele aquecia o cavalo e se preparava para receber o toiro da sua reaparição, de Murteira Grave. Um gesto.

Tem valor, imenso valor, e reafirma, como se nós não soubéssemos, a casta enorme de António Telles, o facto de estar ali, quase um ano depois do acidente, frente a Graves, com a disposição de sempre.

Já no final da segunda actuação, veio recolher um ferro junto à barreira onde eu estava, ergueu-me o tricórnio e disse, a sorrir: "Obrigado, Miguel, pelo que ontem escreveste!". Gesto de um Homem Grande, que no fundo é tão simples, tão humilde - e tão bem educado. Levantei-me e aplaudi-o: "Parabéns, António!".

O primeiro toiro cresceu ao longo da lide e António cresceu também com ele, destacando-se pela classe com que bregou e lidou, deixando ferros frontais com a sua marca, marcando a tarde de que ontem era o principal e mais desejado protagonista.

No quarto toiro, um Grave mais reservado e pouco franco nas investidas, António impôs a sua maestria, toureou como só ele sabe e saiu de cena com o dever cumprido e a alma lavada e cheia de emoções por finalmente ter voltado a vestir a casaca e ter feito aquilo para que nasceu predestinado: tourear. E tourear bem. Olé, António! Sorte para as próximas! 

Rui Fernandes, de que a maioria gosta, mas alguns têm a mania de não gostar ou fingir que não gostam, chegou ontem a Santarém predisposto a triunfar, como os Toureiros Grandes chegam, por exemplo, a Madrid: decidido a jogá-las todas, frente a toiros com que não se brinca, com a atitude e a raça de quem estava ali para marcar a diferença. E marcou-a. Basta lembrar que mandou recolher os bandarilheiros e recebeu os seus dois toiros com duas empolgantes sortes de gaiola - o que diz tudo sobre a atitude que o Rui teve ontem na "Celestino Graça".

Grande, enorme, apoteótica, a primeira lide ao segundo bom toiro da corrida, a bregar com gosto, ladeando na cara do oponente, citando de frente, entrando por terrenos proibidos, cravando de alto a baixo com a verdade e a emoção do seu toureio de alto risco. Aquele curto em que aguentou até ao fim a investida do toiro, ali mesmo em frente do director de corrida, num palmo arriscado de terreno, foi qualquer coisa de fabuloso e de antologia. Vi levantarem-se da bancada os mais exigentes aficionados desta terra, cavaleiros antigos, público em geral, em clima de euforia.

No quinto da tarde, outro toiro bom de Murteira Grave, sério, exigente e "com teclas", Rui Fernandes voltou a levar o público ao rubro. Sofreu um violento encontrão num dos primeiros ferros curtos - daqueles que só sofrem os toureiros que arriscam naqueles terrenos, mas foi o suficiente para dar aos contras um motivo para protestarem...

Rui Fernandes foi sempre um toureiro muito bom e com um lado tremendista - que irrita os puritanos e enerva os mais clássicos cá do burgo. Mas também foi isso que ao longo dos (já muitos) anos da sua brilhante trajectória lhe permitiu marcar a diferença, como ontem aconteceu em Santarém.

Vão certamente alguns dizer e escrever que os cites "a bailar", com o último cavalo, são "números de circo" ou, pelo menos, de menor rigor ortodoxo, espécie dos "saltos da rã" com que o inigualável "Cordobés" também um dia marcou a sua diferença e impôs a sua revolução. Nos tempos idos em que o Maestro Moura também os fazia, baptizei esse cite de "lambada" (lembram-se?), uma dança ao tempo muito em moda. Depois, com vários cavalos que teve ao longo dos anos, Rui Fernandes foi - tem sido - o mais célebre intérprete desse cite que desconcerta os defensores dos costumes, os que teimam em não aceitar a evolução, que tem sempre de ser revolucionária e, por isso, contrária - sem a beliscar na forma - à norma estabelecida.

Tourear é tudo o que se faz diante de um toiro. Não podemos ficar eternamente agarrados ao passado, sem aceitar o que chega de novo - e o que mexe com o público, por mais desconcertante que seja. Os cites "bailarinos" do cavalo de Rui Fernandes são desconcertantes. Mas a realidade é que esse mesmo cavalo, ao entrar pelo toiro dentro, pisando a linha de fogo, põe os mesmos ferros de emoção que os outros põem. E foi com isso que Fernandes acabou por calar de vez os assobios dos contras ontem em Santarém.

Sem que se entenda porquê, o director de corrida Manuel Gama colocou o lenço para o forcado e ficou no bolso com o do cavaleiro, não permitindo a volta à arena a Rui Fernandes. Coisas... Mas, mais volta, menos volta, ele saíu triunfador da tarde. E o resto são cantigas...

João Moura Júnior enfrentou ontem em terceiro lugar o único Grave que destoou dos outros. Um toiro que precisava de óculos e por isso complicava sobretudo no momento da reunião. Boa brega, ferros a atacar um oponente que não investia de longe, uma lide conseguida mercê da sua experiência, mas que pelos motivos referidos não teve o brilhantismo que o toureiro queria - e, por isso mesmo, recusou depois dar a volta à arena, autorizada pelo director.

No último da tarde, um toiro com boas condições de lide, a investir de todos os lados, com a seriedade de um verdadeira GraveMoura Jr. já pôde evidenciar toda a sua arte e todo o seu atrevimento de toureiro irreverente, puro, encastado - diferente. Brega "à Moura", lide perfeita, ferros de emoção "a entrar pelo toiro dentro", remates vistosos e depois duas "mourinas" que levantaram o público das bancadas. 

Actuação empolgante, a última de João Moura Júnior cá pelo Continente nos próximos tempos. Vai agora à Ilha Terceira para tourear duas tarde nas Sanjoaninas, toureia depois em Espanha, em Zamora e regressa aos Açores em Julho para o mano-a-mano com João Telles. Volta a tourear por cá a 14 de Agosto em Abiul e a 15 na Messejana.

Nota alta para as intervenções dos seis bandarilheiros que ontem honraram a classe em Santarém: João Ribeiro "Curro" e António Telles Bastos, Hugo Silva e João Santos, João Ganhão e João Oliveira - a quem dedicaremos a seguir um destaque especial.

Bem os Campinos na recolha dos toiros a cavalo. Uma bonita homenagem da empresa aos Reis da Lezíria em plena Feira do Ribatejo.

Tarde de glória para os Amadores de Santarém, que já aqui enaltecemos em pormenor mostrando as sequências das seis grandes pegas de ontem, cinco à primeira e só uma mais complicada, à sexta, ao tal toiro matreiro e "cegueta" lidado em terceiro lugar.

Uma boa corrida de Murteira Grave, de excelente apresentação e trapio, séria, exigente, a impor e a emocionar, com mobilidade e "com teclas", de que apenas destoou, como já referi, o terceiro da ordem, por deficiente visão. Que, pelos vistos, ninguém viu antes...

A corrida foi presidida por Eduardo Oliveira e Sousa e Luis Mira, respectivamente presidente e secretário-geral da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP) nesta sua já tradicional corrida, para os quais houve brindes do cavaleiro Moura Jr. e dos forcados. Outros brindes, significativos e justificados, de Fernandes e Moura e também dos forcados ao regressado António Telles e à Associação "Sector 9".

Monumental de Santarém registou ontem uma boa moldura humana, com os sectores de sombra muito cheios e os de sol também bem preenchidos, cerca de dois terços da lotação. Mais um êxito do bom trabalho deste grupo fantástico e empreendedor que gere a "Celestino Graça" - aplausos para a Associação "Sector 9"! E sexta-feira lá estaremos de novo!

Fotos M. Alvarenga

Mais logo, depois das 20h00, não perca os Momentos de Glória de António Telles, Rui FernandesMoura Júnior ontem em Santarém

Cites "bailarinos" do cavalo de Rui Fernandes enervaram alguns
puritanos. Mas o cavaleiro respondeu à letra com ferros
empolgantes e saíu triunfador!
João Moura Jr. galvanizou tudo e todos no último toiro. "À
Moura"!