quinta-feira, 28 de maio de 2020

Há 47 anos: o Campo Pequeno veio abaixo na tarde da lição magistral do Mestre

João Núncio tinha 72 anos quando há 47 deu no Campo Pequeno uma
magistral e inesquecível lição de bem tourear a cavalo 
Marcelo Caetano e Américo Tomás assistiram à corrida no camarote
presidencial e condecoraram João Núncio com a Ordem do Infante
Com o Presidente Américo Tomás no momento em que Marcelo
Caetano lhe colocava ao pescoço a condecoração da Ordem do Infante
A apoteótica volta à arena aos ombros dos
irmãos Badajoz e Guilherme Pereira. O
Campo Pequeno veio abaixo numa estrondosa
ovação
Já retirado das arenas, o mítico matador espanhol António Ordoñez
veio há 47 anos ao Campo Pequeno tourear um novilho ao intervalo
da corrida, trajado de curto, em homenagem ao Mestre
Mestre Núncio com Luis Miguel da Veiga,
Ludovino Bacatum e o crítico taurino e escritor
José Barradas, o mais nuncista dos nuncistas
A corrida abriu com a alternativa do cavaleiro
D. José João Zoio
O programa da corrida que há 47 anos se realizou no Campo
Pequeno e em que João Núncio comemorou os seus 50 anos
de alternativa
O momento em que João Núncio (à esquerda, na foto, de bigode)
recebia a alternativa das mãos de António Luiz Lopes, há 97 anos
na praça do Campo Pequeno (cartaz em baixo)


Ontem, 27 de Maio, foi um dia cheio de História para a Tauromaquia nacional. Comemoraram-se 97 anos da alternativa de Mestre João Núncio no Campo Pequeno e 47 da tarde em que assinalou na mesma praça os 50 anos dessa efeméride

Miguel Alvarenga - A praça de toiros do Campo Pequeno estava engalanada e esgotada há vários dias. 27 de Maio do ano de 1973. Lembro-me como se fosse hoje, tinha então 14 anos, era um jovem aficionado que já fazia umas croniquetas no jornal "Cidade de Tomar" e que Manuel dos Santos, que morrera três meses antes, incentivara para começar a escrever de toiros. Fui à corrida com o meu avô materno, José Guilherme, que fora colega de João Núncio na Escola Académica de Lisboa, onde ambos tiraram o Curso Geral do Comércio.
João Branco Núncio tinha 72 anos - mas ninguém deu por isso. Tinha o nº 31 e pesava 470 quilos o toiro de nome "Garoto" da ganadaria dos irmãos Manuel e Carlos Veiga. E o Mestre, que mais parecia outro "garoto", lidou-o primorosamente, dando uma das maiores lições de toureio a que assisti nos meus primeiros anos de aficionado. João Cortes, do Grupo de Montemor, pegou esse toiro e a seguir foi uma festa na arena e na praça. Todo o público de pé em ambiente inesquecível de euforia, os toureiros todos na arena a abraçar e a festejar João Núncio. E depois a apoteótica volta à arena aos ombros dos bandarilheiros António e Manuel Badajoz e Guilherme Pereira. O Campo Pequeno veio abaixo.
Promovida pelo Real Clube Tauromáquico, a corrida foi a favor do Centro de Reabilitação e Medicina de Alcoitão, onde estava internado José Barahona Núncio, também cavaleiro de alternativa, filho do Mestre, que um ano antes sofrera um acidente quando montava um cavalo e ficara tetraplégico.
Ao intervalo, o Presidente da República, Almirante Américo Tomás e o Chefe do Governo, Prof. Marcelo Caetano, condecoraram o Mestre no camarote presidencial com a Ordem do Infante. Outra ovação estrondosa e o Campo Pequeno parecia outra vez que vinha abaixo.
Os restantes artistas da tarde foram os cavaleiros D. José João Zoio, que lidou o primeiro toiro da corrida depois de receber das mãos de Mestre João Núncio a sua alternativa; Manuel Conde, o mexicano Gaston Santos, Luis Miguel da Veiga e Fernando de Andrade Salgueiro. Pegeram os grupos de forcados de Santarém, Lisboa e Montemor e a corrida foi dirigida por Júlio Procópio, que fora bandarilheiro da quadrilha de João Núncio.
Álvaro Domecq (pai) tomou parte nas cortesias em jeito de homenagem ao Mestre. E o mítico matador de toiros António Ordoñez, que depois de Juan Belmonte era o diestro que Núncio mais admirava, apesar de já estar retirado das arenas, fez questão de vir ao Campo Pequeno tourear (divinalmente) um novilho ao intervalo do espectáculo, trajado de curto, como se fosse um jovem amador, num gesto de humildade e grandeza bem significativo da admiração que nutria pelo grande cavaleiro.
João Núncio tomara a alternativa naquela mesma praça 50 anos antes, a 27 de Maio de 1923, das mãos de António Luiz Lopes - passaram ontem 97 anos.
O Mestre morreria três anos depois, com 75 de idade, quando se preparava para de novo voltar a tourear e a ganhar o pão que os revolucionários de Abril entretanto lhe haviam roubado. Com a casa e as herdades de Alcácer do Sal ocupadas, preparava-se na Golegã em casa de seu cunhado Patrício Cecílio (casado com sua irmã Leonarda) para um anunciado regresso às lides. O coração traíu-o no dia 26 de Março de 1976, quando acabava de montar a égua "Jucosa" no picadeiro da Quinta das Obras, da ilustre Família Veiga.
"João Núncio apeou-se, sentiu-se mal. Atravessou o pátio, a caminho da casa de Manuel Veiga, onde, calmamente, fechou os olhos para sempre", como refere a escritora Maria João da Câmara no livro biográfico que dedicou em 2002 à vida e à carreira de glória do Mestre dos Mestres.

Fotos D.R./Alberto Figueiredo e Carlos Brito/Arquivo