sábado, 10 de julho de 2021

Meu sacana...

Meu sacana,

Era assim que às vezes me tratavas e já estás cheio de sorte por não te chamar outros nomes. Que adoravas chamar-me - e a muitos mais. Cabrão, filho da mãe, etc. 


Estava a entrar no cinema, já não ia ao cinema há um ano e meio, desde que começou a pandemia, quando me falou o Hugo Teixeira, e depois o teu Jaime, e depois falei ao Zé Manuel Pires da Costa e depois falou-me imensa gente. E depois…


Morreste. “Quando eu morrer, se eu morrer…”, achavas imensa graça a esta máxima do teu (meu) amigo Zé Lupi. Mas sabias que ias morrer. Eu diria mais, João, cagaste nisso e quiseste morrer à tua maneira, como sempre viveste à tua maneira. Que é o mesmo que dizer: à bruta! Com uma intensidade louca. Sempre a rir. E a gaguejar. Só não eras gago quando cantavas o fado. E cantavas bem. Cantámos juntos algumas vezes. No “Senhor Vinho”, muitas. A última foi no “Alfoz”, na entrega de troféus do “Farpas”. O fado que tu escreveste. “Alguém me perguntou muito intrigado, ao ver as duas coisas tão ligadas, porque é que vão os toureiros ouvir o fado, porque é que vão os fadistas às touradas…”.


Agora olho para trás e lembro-me de tudo e de tanta coisa. E quero chorar. Mas não devo. Ias fazer troça, chamar-me todos esses nomes feios que gostavas de me chamar, mesmo sendo tu uma das pessoas mais bem educadas que eu conheci. Tinhas 77 anos, feitos no dia 18 de Junho, se não me engano. Que, como ontem eu dizia ao teu querido Jaime, correspondiam assim mais ou menos a uns 150 de vida. Ou mais...


Herdei-te do meu Pai. Foi mais ou menos isso. E foi mais ou menos assim.


Embora bem mais novo, eras um dos grandes amigos do nosso Comandante. Tu e o Manuel Lamas. E mais aquela história louca à porta do “Senhor Vinho”, quando os engraçadinhos se meteram com as vossas Mulheres e os três os aviaram com um arraial de pancadaria que acabou na esquadra da Polícia. Uma história que ouvi contar mil vezes…


Depois, do meu Pai, passaste para mim. Fomos Amigos de verdade. Eu podia fazer toda a merda, que tu dizias sempre: “Estou a teu lado, meu sacana, os meus amigos não têm defeitos”


A tua história toda, conheço-a de trás para a frente, mesmo sem saber dados muito concretos. Mas também não importa. Não venho aqui escrever a tua biografia. Venho aqui escrever o que me sair da alma. E choro outra vez, meu sacana. Mas não devo.

 

Eras engenheiro, trabalhaste no Ministério da Agricultura, tiveste um papel fundamental, com o Zé Zuquete e o Zé Manuel Pires da Costa, no processo de devolução das terras aos proprietários que tinham sido roubados pelos selvagens da revolução. Foste toureiro a cavalo amador. E aquela vez em Almeirim, num Festival da Amizade, era eu forcado e tu cavaleiro e caíste do cavalo no pátio de quadrilhas, antes da festa começar e foste parar o hospital com um bracinho partido? Lembras-te?


E aquelas noitadas de fado nos idos anos de 70, quando vivias ali no Rego com o Xinha e toda aquela trupe de doidos? E depois trabalhaste muitos anos na casa do Dr. Ortigão Costa, que adoravas e à família toda. E ao Manuel Jorge de Oliveira, com quem um dia te zangaste e depois fizeste as pazes. Tinhas a mania de te zangares com toda a gente. E da história do Camacho nem vou falar porque não vale a pena. Eras assim, o que é que se havia de fazer? E eu era amigo dos dois e tive que estar tanta vez entre dois fogos, meu sacana…


E também foste apoderado. Lembro-me de quando andavas com o Paulo Caetano, depois com a Ana Batista, em que acreditaste sempre e ajudaste a lançar. 


Dava gosto assistir a uma corrida de toiros a teu lado. Assisti a tantas e aprendi tanto contigo. Percebias de cavalos como ninguém.


E depois um dia eu desafiei-te a escrever no “Farpas”. Primeiro sobre cavalos de toureio. Depois sobre pessoas. E quando começaste a escrever de pessoas, disseste-me um dia que já tinhas um título para a crónica: “P’ra que a terra não esqueça”. E eu disse-te: “Porra, João, que raio de título. E assim vão pensar que as pessoas morreram…”. “É mesmo para que nunca as esqueçam e vais ver que pega”. E pegou. Escreveste depois dois livros com esse título, em que reuniste todas as crónicas que tinhas escrito no jornal. E que foram um sucesso. Dizias, cheio de orgulho, a toda a gente: “Foi este sacana que me pôs a escrever”. E eu ficava também todo orgulhoso.


Depois criaste o teu próprio blog, o “Sortes de Gaiola” - mas nunca deixaste de estar a meu lado. “O que precisares, diz…”.


Às vezes eras um chato do caraças. Escrevias uma crónica para o “Farpas” e telefonavas-me antes a lê-la para ver se eu gostava. E a chamada, contigo a gaguejar, nunca mais acabava. E eu, com a paciência que tenho para atender telefones, às vezes nem te atendia.

“Meu sacana, não me atendes? Toma lá esta merda!”. Foi na praça do Montijo, numa corrida. Entregaste-me um saco da TMN. Era um telemóvel. “Toma este telemóvel só para me atenderes a mim…”. Fazias loucuras destas… O Emílio fartou-se de rir. E eu também. E passei a atender-te sempre, que remédio...


E agora escrevo mais o quê? Estou aqui sentado ao computador e juro-te que me apetece chorar. E chorar de raiva. Porque tu, que amavas a vida como poucos, cagaste e quiseste morrer. Ou seja, morreste como viveste. À tua maneira. Como quiseste e ninguém tem nada a ver com isso, como costumavas dizer e bradar.


Em Fevereiro saíste do hospital e disseste que não querias mais tratamentos, que havias de morrer como querias. E foste embora. E o Pombeiro telefonou-me. E eu falei ao Jaime. E tu não atendias os telefones. E depois atendeste-me. “Ó João, és doido? Piraste-te do hospital? O Pombeiro, o Jaime, estão preocupadíssimos”. A tua voz não era a mesma. Era uma voz cansada. “Eles que se lixem, não ligues, eu estou bem”. Doido!


Fomos falando. Dizias que estavas sempre melhor, mas pela tua voz eu percebia que estavas pior. Vi-te na Azambuja, na corrida de 30 de Maio, fotografei-te ao longe. Depois, no fim, quando te procurei, tinhas saído ao quarto toiro. Telefonei-te no dia seguinte. “Estava muito calor, senti-me mal, mas já estou bem, não te preocupes”. Sacana. Sabias que não estavas nada bem.


Falámos pela última vez na semana passada. Tinhas cá o teu filho António. “Estou melhor”, dizias. E sabias que não estavas. Mas dizias.


No início desta semana pioraste. O Jaime não me deu grandes esperanças. Percebi que era o fim. Merda, João.


E os teus filhos? E os teus netos? Que adoravas. Tinhas um orgulho imenso no João, no António, no Jaime, agora nos netos que amavas. Quando te ouvia falar dos teus filhos, e ouvi tantas vezes, sentia o amor de um Pai babado, babado de mais mesmo, eram a tua vida, agora tu continuarás a ser a vida deles. E a nossa. A dos Amigos de verdade. A quem dizias sempre “se eu morrer…”, como quem tinha a certeza de que não morreria nunca.


Morre quem é esquecido. É um lugar comum que se escreve muitas vezes. Mas que te assenta que nem uma luva. Morreste o caraças, João. Foste mas foi cantar um fado, beber um uísque, fumar meia dúzia de cigarros para um sítio qualquer. Eras, no meio taurino, demasiado importante para morrer, para desaparecer. Vai-te lixar, meu sacana!


Tinhas um nível cultural e intelectual muito acima da média. Escrevias muito bem. E sabias do que escrevias. Não tinhas quase nada a ver com isto. Eras superior a isto. Por isso te admirava. Te adorava. E tenho o maior orgulho em ter sido eu quem te pôs a escrever, como dizias.


Agora vou-me embora daqui, João. Acho que já escrevi o que me apetecia escrever. Tenho a consciência de que devia ter escrito muito mais. Mas agora não consigo. Devia ter lembrado a tua imensa amizade, devoção diria mesmo, pelo eterno Ángel Peralta, pelo Luc Jalabert, pelo Ginés Cartagena, por tantas personalidades marcantes do mundo tauromáquico - que te admiravam, te respeitavam e eram teus Amigos de verdade. Um dia escrevo, como tu escrevias, em tua homenagem, um “Pr’a que a terra não esqueça” a contar outras histórias. Tantas e tão giras que vivemos juntos.


Acho que vou beber um uísque, fumar um cigarro e chorar um bocado. Mesmo que não gostes. Mesmo que me chames sacana. E outros nomes feios...


Agora a sério: vais-me fazer falta. Não vou estar amanhã no último adeus a ti. E tu entendes isso. Vou ficar com o meu neto a cumprir a missão de Avô. E isso tu entendes. A qualquer hora do dia vou entrar numa Igreja, sabes que não sou muito de Igrejas. Mas amanhã vou rezar por ti, João, apetece-me rezar qualquer coisa por ti, pedir a Deus que te receba bem, pedir-te que dês um abraço ao meu Pai, a todos os nossos amigos que andam por lá. E vou-me lembrar de ti para o resto da vida. E porra, que merda, já estou a chorar e não queria.


Um abraço do tamanho do mundo ao João, ao António e ao Jaime. Aos teus netos. 


E a ti, meu sacana, um abraço daqueles de partir costelas.


Ah, esquecia-me disto: também foste forcado. E fardaste-te outra vez em 2009 e 2010, e foste lá dentro, quando o “Farpas” foi vetado pela Associação de Forcados (já esqueci isso, já se ultrapassou tudo, desculpem-me mas tinha que o lembrar - por ti) e formámos com o Chico Costa uma selecção para pegar as corridas do jornal na Figueira da Foz. Obrigado, meu Querido!


E foste embora sem sequer esperar pela estreia dos teus Forcados Académicos de Coimbra no Campo Pequeno. Vamos-te lembrar nessa noite.


Vamos lembrar-nos todos de ti nesse dia. E sempre!


Um beijo, meu sacana.


Miguel


Foto D.R.