segunda-feira, 4 de maio de 2020

A entrevista que fiz a Amália em 1980 no jornal "A Rua"



"Nunca tive projectos, tudo me aconteceu" (e agora acontece-lhe cantar o tema de uma novela japonesa) - foi este o título da entrevista que fiz a Amália em Fevereiro de 1980 para o jornal "A Rua" e hoje aqui reproduzo na íntegra

Foi há dias, no Coliseu. As luzes acenderam-se todas. O público que enchia por completo a sala levantou-se e durante longos minutos manteve-se de pé, aplaudindo a artista. No palco, Amália Rodrigues. (“Primeiro senti medo. Depois vi que toda aquela gente estava contente por me ver regressar. Senti, mais ou menos, que as pessoas que haviam pensado não me voltar a ver, estavam um pouco aliviadas. Eu estava realmente ali!” - diz-me Amália, e acrescenta: “só foi pena que o som se tivesse avariado, e não tivesse as condições necessárias, mas mesmo assim foi um êxito a festa de homenagem ao José Castelo”). Foi um êxito, acima de tudo, o regresso de Amália.

Estamos agora em sua casa, na Rua de São Bento, a meio caminho entre o Largo do Rato e o palácio dos nossos políticos. (“Não gosto, nem percebo nada de política e até me rotularam de fascista, imagine. São uma gente danada, os políticos”). Na minha frente, a Rainha do Fado, uma mulher simples, uma mulher normal.
- Sou muito diferente da Amália que algumas pessoas imaginam. Sou natural, não tenho manias, não sou uma pessoa difícil e muito menos uma vedeta…
Amália tem nas mãos um bloco e uma caneta. Pergunto-lhe para quê:
- Sabe, ando a escrever uns poemas. Poemas que não chegam bem a ser poemas, são cantigas. Ainda um dia vou gravar um disco só com letras minhas, com umas “amaliazices”. Mas não sou uma intelectual. Olhe, há poemas muito bons, outros bons, una maus e outros, ainda, péssimos. Eu sou dos maus, mas gosto de escrever. E gosto muito de ler. Estava agora mesmo a ler um livro de uma poetisa espanhola e ela diz, a certa altura: “Vi um dia uma árvore que me parecia uma pessoa de família”. Só essa frase, para mim, é um poema. Sensibiliza-se e a “isso” eu considero um poeta…
Depois calou-se uns segundos…
- Bom, mas vamos lá à sua entrevista, o que me quer perguntar?
Antes que lhe fizesse a primeira pergunta desta nossa conversa (não a considero entrevista porque no dia em que um jornalista quiser entrevistar Amália Rodrigues terá que escrever um livro, e mesmo assim, não terá fim…), ela olhou-me de frente e disse:
- É muito gira essa cruz que traz ao peito. Mostre-me lá…
E eu mostrei. “É muito bonita” - voltou a dizer.
- Como se sente, Amália?
- Bastante melhor. A doença diminuiu-me um bocado, mas afinal não foi tão grave como aquilo que cheguei a pensar. Digamos que foi das mais “simpáticas” doenças dentro da antipatia que podem ser estas coisas de coração. Agora o médico aconselha-me a andar um bocado, a passear. Creio que estou curada.
- Quando para cá telefonei há dias, a Amália estava a gravar…
- Sim, tenho gravado sempre uma, duas, três vezes por semana. É um disco de marchas do compositor Frederico de Freitas, que morreu ainda há pouco. Olhe, foi uma machadada que levei e que me deixou muito em baixo, a morte dele.
- Amália, se eu lhe perguntar o que é o fado?
A sala onde estamos inunda-se de um silêncio enorme. Mãos postas, Amália deu-me a sensação de que ia cantar o fado. Por segundos, pareceu-me mesmo ouvir o trinar de uma guitarra. Infelizmente, não foi o que se passou…
- Eu sempre liguei o fado ao destino. E afinal o fado foi mesmo o meu destino. Por isso, é um pouco difícil eu dizer-lhe o que é o fado, como cantiga. Mas acho que se distingue de toda a outra música. O fado tem qualquer coisinha lá dentro. É como o flamenco ou o samba, tem toda uma tradição, toda uma raça, todo um povo por detrás dele…
- Como está hoje o fado? Canta-se melhor, canta-se pior?
- No meu tempo não havia nenhum artista mau. Eu achava-os todos bons. Hoje o fado tem muito mais importância que tinha quando comecei. Parece-me que hoje há muitos novos a cantar. Toda a gente quer cantar o fado. Há. realmente, um movimento pró-fado e pode ser que daí saia alguma coisa…

“Tenho pouca pachorra para me ouvir”

- De todos os seus fados, tem preferência por alguns? Ou antes, quais gosta mais de cantar?
- Eu tenho muito pouca pachorra para me ouvir a mim própria. Em trezentas vezes, gosto de me ouvir três… Gosto muito de inventar, de improvisar e por isso, talvez, prefiro aquele fado clássico, em que podemos improvisar, em que não é sempre igual…
- Por exemplo…
- O “Povo que lavas no rio”, a “Estranha forma de vida”, “Uma gaivota”. É o chamado fado “mais pobrezinho”, o fado da Mouraria, aquele que nós, fadistas, consideramos “o clássico”. Mas eu tive várias paixões por vários fados. Houve várias épocas, a do Valério, por exemplo…
E depois, sem se conter, diz:
- Devo a minha carreira ao Frederico Valério. Cada fado que ele fazia era um êxito novo que saía cá para fora.
- Como é a Amália fora dos palcos?
Ainda eu não acabara de fazer a pergunta e já ela me dizia, sorrindo: “Uma cigana!”.
- Bom, a Amália fora dos palcos é exactamente a Amália fora dos palcos. Tenho muito pouco a ver com a Amália-vedeta que as pessoas imaginam. Sou uma pessoa normal. Há muita gente que me sente como eu sou e acho que os portugueses não gostam só de mim no palco. Gostam da tal Amália fora dos palcos de que você falou…
- Quando canta lá por fora sente que representa Portugal?
- Não, se alguma vez fosse representar Portugal eu não sairia daqui. É a Amália sempre quem vai e sou tão portuguesa, sinto-me tão portuguesa, que não preciso de pensar que vou representar Portugal.
O tempo passava e embora uma conversa com Amália seja suficientemente interessante para ali ficarmos horas e horas a falar - porquê? porque Amália é a Amália e basta -, era altura de terminar. E perguntei-lhe quais os seus projectos futuros.
- Eu nunca tive projectos. Tudo me aconteceu. Olhe, cá está um exemplo do fado, do destino. De qualquer modo, tenho esse disco de marchas e tenho imensos contratos que ficaram adiados e que vou agora cumprir. Vou a França, à Holanda, aos Estados Unidos, a Espanha e ao Brasil. Está tudo à minha espera, agora que melhorei.
- Então que corra tudo bem - disse-lhe e guardei o bloco de notas.
- Sabe uma coisa gira, que me esqueci de lhe dizer? - acrescenta ainda a criadora de “Ai Mouraria”. E revela-me então um dos melhores apontamentos de reportagem desta breve conversa:
- Gravei há dias uma cantiga em português que será o tema de uma novela japonesa. Achei piada como os japoneses se foram lembrar da Amália para isso…
Nós já sabíamos. Já o tínhamos lido não sei em que jornal. Mas não nos admiramos nada de que até no Japão Amália seja lembrada. E querida.

Foto D.R.