segunda-feira, 6 de julho de 2020

Um artigo brilhante de Fernando Alves (TSF) sobre Mário Coelho



Confessando que nunca foi nem irá a uma tourada, o jornalista Fernando Alves, autor do programa "Sinais" nas manhãs da TSF, escreveu hoje no site da sua rádio este artigo, a todos os títulos brilhante, sobre a figura de Mário Coelho, que aqui reproduzimos com a devida vénia

Nunca fui nem irei a uma tourada. Mas julgo saber por que é que Álvaro Guerra, o diplomata e escritor de quem Agustina tanto apreciava o romance "Raízes do Coração", disse certa vez: "Gostava de fazer da minha vida uma tauromaquia".
A família de Alves Redol acolheu um menino órfão que viria a ser o grande matador José Júlio. Redol foi uma vez com o amigo a Sevilha, mas não conseguiu entrar na Maestranza, tanta a angústia. Num outro Julho, faz agora 60 anos, escreveu na revista "Almanaque" uma carta a Federico Garcia Lorca na qual confessa: "Doem-me os toiros e não ando lá". É um texto comovente no qual o autor de "Gaibéus" nos abre a formidável arena da infância: "Brinquei aos toiros quando era menino. Fui cavaleiro por causa de um casaco de veludo lavrado que minha mãe me fez. Nenhum outro rapaz da minha rua se parecia assim tanto com um cavaleiro. Escarranchava-me num pau com uma cabeça de cavalo enfiada na ponta, fazia as cortesias com grande dignidade e arranjei certa arte e algum desembaraço a cravar farpas em canastras de sardinhas".
Ontem morreu outro grande vila-franquense, o bandarilheiro e matador Mário Coelho. Tinha 84 anos e era um nome maior da história do toureio. O jornal i foi o único que concedeu honras de capa a este enorme artista de quem Picasso fez o retrato. Foi amigo de Hemingway. Em Maio do ano passado revelou ao i passagens de uma conversa com o autor de "O Verão Perigoso", no qual Hemingway descreve a rivalidade entre Dominguín e Ordoñez). O escritor disse-lhe: "Eu dava tudo para pôr um par de bandarilhas como tu" e ele respondeu ao homem que ganhara o Nobel: "Eu dava tudo para escrever uma página como o senhor escreve".
Foi amigo de Ava Gardner que só era "feliz de noite". Era um grande maestro, um homem elegante e culto.
Nunca irei a uma tourada, repugna-me a crueldade para com os animais, mas sei que há temas que não se despacham com duas verónicas.
Sou mais sensível ao gesto de Picasso do que à reprovação de André Silva.
E incomoda-me o silêncio dos jornais de hoje sobre o desaparecimento de alguém com a dimensão de Mário Coelho. Por isso a minha vénia ao jornal i cuja capa é uma estocada num certo metenojismo nacional. Mário Coelho dissera, na última entrevista ao i: "Seria um homem extraordinariamente completo e feliz se tivesse tido uma morte na arena. Hoje, se tivesse uma oportunidade de um toiro me matar, eu deixava-o matar".Mas foi a covid que o matou.
A Presidência da República fez dele, há uns anos, Comendador da Ordem de Mérito. Aguarda-se, ao menos, uma nota, ainda que seca e oficiosa, das competentes entidades.

Fernando Alves/TSF

Fotos TSF e D.R.