terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Memórias: a história do meu encontro com o mais perigoso "capo" da Máfia Napolitana

Será muito provavelmente um dos capítulos mais atribulados, mas também mais engraçados, das minhas Memórias de Jornalista, que vou escrevendo aos poucos. Partilho hoje convosco a história do meu encontro com um dos mais perigosos "capos" da Máfia italiana, Emílio di Giovine (foto de cima) que um dia se virou para mim e me disse, olhos nos olhos, que tinha pensado mandar matar-me...

Miguel Alvarenga - Referenciado ao tempo como número três da hierarquia da Máfia Napolitana, "capo" da Máfia da Calábria, a N'dranghetta, Emílio di Giovine foi preso pela Polícia Judiciária em Vilamoura, no Algarve, no ano de 1994, depois de uma fuga violenta e sangrenta em Itália, quando era transportado de uma cadeia para outra e foi libertado por mafiosos que mataram todos os guardas prisionais que o escoltavam.

Durante os anos em que permaneceu detido em Portugal, até ser extraditado para Itália, Emílio di Giovine foi considerado um dos presos mais perigosos internados no sistema prisional português. Nunca permaneceu mais de três meses numa mesma cadeia e em todas elas protagonizou empolgantes tentativas de fuga. Um helicóptero chegou a sobrevoar a Cadeia de Coimbra com o objectivo de o libertar.

Quando Giovine foi preso em Portugal, todos os jornais, rádios e televisões relataram o seu vasto historial como perigoso "capo" da Mafia Napolitana. E um deles foi o semanário "O Título", de que eu era ao tempo director.

Procurando renegar todo o seu historial, por forma a tentar fazer crer que a sua detenção não passara de um erro e que ele nunca tivera quaisquer ligações ao mundo do crime, ao tráfico de drogas e à Máfia, Emílio di Giovine moveu processos judiciais a todos os orgãos de comunicação social que o tinham "ligado" a essas actividades criminosas. E, entre eles, ao meu jornal.

O meu advogado e advogado de "O Título" era o meu querido e saudoso amigo Dr. João Torre do Valle, que no meio artístico todos conheciam por Zina e que era, além de um brilhante causídico, um fantástico guitarrista de fado, dos melhores.

Requeremos a abertura da instrução do processo. Não sou advogado, mas tenho algumas luzes que foi adquirindo nas não sei quantas vezes em que respondi em Tribunal. A instrução do processo é uma diligência prevista na lei e que tem por objectivo uma pré-apreciação, por parte do Juiz de Instrução Criminal, do processo, com audiência de testemunhas, a fim de avaliar se existe de facto matéria para acusar e ir a julgamento, ou se, pelo contrário, se arquiva a queixa e não chega a haver julgamento.

No dia marcado para essa diligência (espécie de pré-julgamento), apresentei-me com o Dr. Torre do Valle no antigo edifício do DIAP (Departamento de Investigação e Acção Penal), que ao tempo (estou a falar do final dos anos 90) funcionava na Rua Gomes Freire, quase a chegar ao Campo dos Mártires da Pátria, em Lisboa.

Havia um aparato policial espectacular. A rua estava cortada, polícias de metralhadora e só deixavam circular quem tinha uma justificação. Nós tínhamos. A presença de Emílio di Giovine nessa sessão de instrução do processo não era obrigatória. Mas entendemos logo que ele tinha vindo. Caso contrário, não haveria aquele poderoso aparato policial na rua.

Identificámo-nos à entrada e subimos ao primeiro ou segundo andar, onde nos encaminharam para uma pequena sala de audiências - onde já estava Emílio di Giovine, guardado por dois guardas prisionais e dois agentes policiais armados até aos dentes.

Era um homem baixo e bem parecido, bem vestido, de blazer claro, óculos. Entrei e disse "boas tardes". Ele falava fluentemente português, provavelmente porque já estava detido no nosso país há dois anos (acho que esta audiência foi em 1996 e ele fora preso em Vilamoura em 1994).

Virou-se para mim e estendeu-me a mão. Aparentemente, achei estranho que me cumprimentasse tão delicadamente. Não estava com ele nenhum advogado, chegou pouco depois. Estendi-lhe também a mão e voltei a dar-lhe as boas tardes.

Frio que nem uma pedra de gelo, esboçou um sorriso e disse-me textualmente, nunca mais esqueci e acho que nunca mais vou esquecer:

"Desculpe, Senhor Alvarenga, tê-lo maçado com esta deslocação ao tribunal e com este processo, mas depois do que o seu jornal escreveu eu só tinha duas soluções: ou lhe movia este processo ou o mandava matar!".

Assim, sem mais nem menos. O Dr. Zina ficou espantado. Os guardas não disseram nada, nem sei bem se ouviram, ele falou baixinho. Eu fiquei meio arrepiado, mas depois contrabalancei com a minha habitual veia humorística:

"Não se incomode, ia agora matar-me, não era preciso isso...".

E ele sorriu outra vez. Mas assim mais ou menos como quem diz: "Não tenhas dúvidas de que fazia isso...". E eu não tinha mesmo...

Entretanto entrou o juiz. Nem deu tempo a que falássemos. Giovine acusava-me de ter mentido, de ter escrito que ele era um mafioso, etc. e tal, alegando que nunca fora nada disso.

O juiz puxou de uma série de folhas de papel, leu-as de uma ponta à outra e disse: "Solicitámos o curriculum (cadastro) do Senhor Di Giovine às autoridades italianas e, como se vê, tudo o que o jornal escreveu corresponde à verdade". E decidiu pelo arquivamento do processo.

Giovine não ficou muito feliz, como era de esperar. Antes de sair, virei-me para ele e para o advogado dele e desafiei-o: "Senhor Emílio di Giovine, não quer dar uma entrevista ao meu jornal?". E ele disse que sim. Rapidamente, combinámos a forma de o fazer. Eu enviaria as perguntas para o seu advogado, ele fazia-lhas chegar e depois mandava-me as respostas - o que aconteceu cerca de um mês depois, tendo "O Título" publicado uma grande entrevista em exclusivo com o preso mais perigoso das cadeias nacionais.

Depois disso, ainda trocámos algumas cartas. Digamos, quase ficámos "grandes amigos". Soube que entretanto se casara, na prisão, com uma portuguesa que conhecera por cartas que trocaram, não me lembro bem como e em que circunstâncias.

E poucos anos depois, talvez em 1998 ou 1999, Emílio di Giovine foi condenado a 15 anos de cadeia pelo Tribunal de Loulé, mas acabou por ser extraditado para Itália quando estava a uns meses de ser libertado, por ter sido ultrapassado o período máximo de prisão preventiva, uma vez que por atraso na decisão dos recursos interpostos, a sentença nunca chegou a transitar em julgado.

Em 12 de Maio de 1998, o "Diário Económico" publicou uma entrevista do jornalista João Paulo Guerra ao deputado italiano Francesco Forgione, membro da Comissão Parlamentar Antimafia da Assembleia Regional Siciliana, com o título "Máfia lava dinheiro em Ilhas de Portugal" e onde este sustentava que a passagem por Portugal de Emílio di Giovine constituía um dado com enorme significado: "Um mafioso importante como Di Giovine não esteve aqui por acaso. Não tenho dúvidas que a sua presença assinala uma relação de negócios da N'dranghetta em Portugal, o estabelecimento de um circuito de tráfico que atravessa Portugal e conduz à Europa". O deputado italiano frisava ainda que "hoje (1998), segundo o FMI, os negócios mafiosos representam 2,1 por cento do PIB mundial".

Referenciado como "rei do haxixe" na década de 1980, Emílio di Giovine arrependeu-se na década de 2000, escrevendo em 2013 um livro intitulado "Confissões de um Pai", dedicado à filha (que entretanto se tornara também uma das principais dirigentes da Máfia Calabresa), livro no qual, segundo se escreveu ao tempo na imprensa, relatou "a memória da vida criminosa e a história da nova vida sob protecção. É a confissão de um homem que estava à frente de uma das organizações criminosas mais fortes do mundo, que ordenou assassinatos a seus tenentes de confiança, que se cercou de. mulheres bonitas, que conseguiu escapar das prisões de Milão, Barcelona e Nova Iorque. Até ao dia em que percebeu que a vida criminosa 'derretia como neve ao sol' e decidiu se arrepender, cada vez mais longe da identidade de um chefe e cada vez mais próximo da de um pai". O depoimento para o livro foi recolhido por Ombretta Ingrasci, que traça os encontros com o "capo" arrependido e contextualiza a sua biografia.

Marisa Merico, a filha de Emílio de Giovine, tinha 22 anos quando o pai foi preso em Portugal. Chegou a visitá-lo na Cadeia de Coimbra, onde o tentou libertar com recurso a um helicóptero, como atrás referi. Falhada essa tentativa de fuga, acabou por substituir o pai na liderança de um dos mais sanguinários ramos da Máfia italiana. Após cumprir dois anos de prisão por lavagem de dinheiro, abandonou também o mundo do crime, escreveu igualmente um livro e vive hoje em Inglaterra. Tem 52 anos e dois filhos. O seu livro "Princesa da Mafia" foi um sucesso de vendas, como o fora já o de seu pai.

Emílio di Giovine regenerou-se, perdi-lhe o rasto, pesquisei na internet mas não consegui descobrir se ainda é vivo, penso que sim. Espero que sim.

Fotos D.R.

O Dr. João (Zina) Torre do Valle, ao tempo meu
advogado e do jornal "O Título", que foi também
um dos maiores guitarristas de fado. Morreu em
2019 com 80 anos

Emílio di Giovine durante o seu julgamento em Loulé
Di Giovine com a filha ao colo e, ao lado, Marisa Merico (que
lhe sucedeu como chefe da Máfia) numa foto recente
O livro de Di Giovine, escrito em 2013,
depois de se ter regenerado. E, em baixo,
o livro que sua filha também escreveu