terça-feira, 28 de abril de 2020

Leitor recorda-nos uma célebre faena de Chibanga em Alcácer nos anos 90

José Henriques, leitor do "Farpas", recorda-nos um episódio passado no início
dos anos 90 na praça de Alcácer do Sal e protagonizado pelo saudoso Chibanga


José Henriques, aficionado e leitor do "Farpas", teve a amabilidade de nos contar uma história passada nos anos 90 em Alcácer do Sal e protagonizada pelo saudoso Ricardo Chibanga - que aqui publicamos, com o nosso agradecimento

Olá amigo e senhor Miguel Alvarenga,
Todos os dias dou uma olhadela ao seu "Farpas Blogue" e na falta de notícias taurinas, admiro as suas boas fotos desta Lisboa de outras eras!
Como o amigo nestes últimos tempos, muito acertadamente tem enaltecido a memória do saudoso Ricardo Chibanga, lembrei-me de lhe contar um episódio do qual ele foi protagonista, que talvez goste de conhecer e se assim entender, fazer conhecer a mais alguns aficionados.
Os meus cumprimentos pela forma corajosa como se exprime e com esperança de que o seu blogue volte a ser um baluarte defensor da família tauromáquica.

Eis uma história, que sem pretensões algumas e ainda que incapaz de matar o vírus, talvez ajude a passar o tempo. Para alguns, muito poucos, até pode ajudar a matar saudades!
Decorriam os anos 90 ou 91 e Portugal e Espanha estavam a braços com uma outra epidemia que também ainda que sem comparação com a actual covid 19, teve grande impacto no mundo dos toiros, especialmente em Portugal. Todos se lembram dela, claro, mas o que é mais desconhecido, mesmo dos mais antigos, é o episódio que vos vou contar.
Na época, vivia na Suíça e apenas vinha a Portugal de tempos a tempos.
Vivendo num país no centro da Europa, longe do mar e dos toiros, aproveitava sempre a vinda a Portugal para matar saudades destas duas paixões, o mar e os toiros.
O mar, esse esperava por mim e fielmente lá estava sempre à minha espera, no mesmo sítio.
Os toiros, mais ingratos, tinha que descobrir por onde eles andavam e nem sempre os encontrava. Mas desta vez, tive sorte.
Nos Restauradores, na agência ABEP, lá estava um grande cartaz a anunciar toiros, desta vez em Alcácer do Sal.
Pelo sim pelo não, como já estava perto do fim da época e como vale mais um pássaro na mão, logo ali comprei o bilhete para a corrida, não fosse o diabo tecê-las e ficar no pau da roupa, fora da praça!
Nariz no ar, só precisava de “seguir o cheiro da bosta”.
Duas horas depois, estava em Alcácer, no meio de um burburinho dos diabos, gente aos magotes à volta da praça e eu bem contente de ter o bilhetinho de entrada no bolso. Há tanta gente à volta da praça que de certeza já não há bilhetes!
No entanto, tinha duas prioridades: arrumar o carro e saborear uma boa bifana com uma boa imperial, que também faziam parte das minhas muitas saudades destas coisas simples mas que nos tocam na alma, quando estamos muito tempo longe. Na Suíça, claro que há muitas coisas populares e boas, mas uma bifana na feira com mais um ou outro petisco, ali juntinho à praça de toiros… bem isso lá não há!
A hora da corrida aproxima-se e eu  aproximo-me da entrada. Mas, algo se passa que não é habitual. As portas estão abertas, mas não vejo ninguém a entrar. Pior, não vejo os apertos de mão e abraços habituais das gentes dos toiros, nem sequer forcados. Pior ainda, não vejo os cavalos presos aos camiões, nem mesmo os camiões!
Grande bronca! Desta vez, , seguiste o cheirinho da bosta na direção errada.
A corrida foi anulada. Mas porquê? Num sobressalto, dirigi-me logo à bilheteira que continuava aberta, onde um velhote simpático e com um sorriso meio irónico, me explicou o que se estava a passar.
- Não se preocupe, tourada vai haver de certeza. Mas infelizmente, não vai ser a cavalo. Por causa da peste equídea, vai ser uma corrida a pé. Mas vai haver de certeza.
- Mas, porque não vejo ninguém a entrar?
- É que a gente daqui gosta é de toiros a cavalo. Alcácer é a terra do João Núncio. Esta praça tem o nome dele.
E o velhote insistia:
- Se quiser, devolvo-lhe o dinheiro, mas tourada vai haver de certeza. Já cá estão alguns toureiros.
Que sorte a minha. Afinal, há males que vêm por bem. Gosto de uma boa tourada à portuguesa, mas a minha paixão pelos toiros tem base no toureio a pé, infelizmente tão pouco corrente em Portugal. Mas naquele caso, os deuses estavam comigo. Bendita peste equídea!
Foi então, que uma vez reconfortado, me aproximei do cartaz e de facto lá estava escrito num pequeno papel, estilo toalha de mesa, que a corrida tinha sido anulada e substituída por outra a pé, com o nome dos matadores, também em caracteres pequenos.
Pouco depois, acreditei quando vi chegar uma carrada trajada de luces da qual sobressaía Ricardo Chibanga. Os dois outros, eram também figuras de nome, mas esqueci os nomes. O nome do Chibanga, era impossível esquecer mesmo para um leigo em matéria de toiros. E já vão ver porquê.
"Praça cheia, toca o hino"... naquele tempo era assim! Sim, mas isto era nas Caldas, terra onde nasci.
Aqui em Alcácer, não foi bem assim. Havia sim uma boa banda de música que abrilhantou as tradicionais e rápidas cortesias com um belíssimo pasodoble, mas sem hino!
Quanto à praça cheia… também não foi bem assim. Pelos meus cálculos, entre elementos da banda de música e público na bancada (todos na primeira e segunda filas), não estavam mais de cem pessoas!
Sai o primeiro toiro, negro, muito solto, que o Chibanga tem dificuldade a fixar. Umas verónicas de mestre e umas chicuelinas bem cingidas, mostram-me logo o grande toureiro que era o Chibanga, que eu ainda não tinha visto tourear.
Soa o clarim e acontece a magia. Um belíssimo par de poder a poder com toda aquela entrega que lhe conhecia-mos, para delícia dos poucos afortunados que assistiam.
Mas houve quem não gostasse. O toiro, esse não apreciou e sem mais perseguiu o Chibanga que saltou a trincheira. O toiro seguiu-o e caíu sobre ele na teia.
Alvoroço e grande susto, o toiro volta à arena e impávido e sereno, o Chibanga perfila-se para um segundo par, magistral como o primeiro.
O toiro volta a perseguir o Chibanga e salta de novo a trincheira atrás dele.
E o acto repete-se. Nova reunião, novo par e pela terceira vez consecutiva, o toiro salta a trincheira sobre o pobre Ricardo, que a custo continuou a faena, com grande sucesso até ao fim. Foi uma excelente corrida, quase à porta fechada, resultado de uma outra pandemia, há quarenta anos.

Há cerca de dois anos, encontrei-me na Golegã com o Chibanga que estava com uns amigos no Café Central. Apresentei-lhe a minha esposa e claro, a conversa só podia ter sido sobre toiros. Ou melhor, recordações dos toiros!
Então, contei aos amigos aquele história de Alcácer, tal como a estou a contar agora. Todos riam e ninguém a conhecia. Eram todos muito mais novos que nós, os velhotes. Mas claro, o Ricardo lembrava-se. E com os olhos avermelhados talvez pela emoção:
- Sim, sim, lembro-me muito bem. Poucos devem existir que tenham assistido, mas eu recordo-me muito bem e aliás, como poderia esquecer?
Será que entre os velhotes alguém por acaso se lembra deste episódio?
Fiquem bem.

José Henriques

Fotos Fernando José e D.R.