Hás-de lê-la, Zé João, sei que sim, estejas agora onde estiveres. Hás-de ler esta carta que me apeteceu escrever-te. Morreste? Porra! E nem te despediste da gente, nem um último copo, nem uma última gargalhada - e demos tantas, lembras-te? - nem um derradeiro abraço? Nem parece teu.
Nasceste em berço de ouro, mas atravessaste a vida com uma humildade que chegava a arrepiar, que faz dos grande homens maiores homens ainda. Não acredito, Zé João, que tenhas partido assim de repente, agora que estavas radiante, feliz com o teu regresso ao Campo Pequeno, ilusionado com a tua participação na próxima sexta-feira no festival de Coruche de homenagem ao "teu" António Badajoz! Porra! Não é gesto teu.
Hoje hão-de aparecer - é costume nestas horas - muitos amigos que nunca o foram. Nós fomos. Tantos anos. Tanta história. Histórias das arenas, das touradas, histórias da política, do jornal. Foste meu sócio - poucos sabem e agora também já pouco interessa. Deste-me a mão numa hora difícil do jornal. Foste Amigo. Sabias ser Amigo. Mas isso não interessa, muito menos me motiva agora. O que me interessa foi tudo o que ficou para trás. Foi uma vida. Trinta e tal anos é muito tempo. Lembro-me tão bem de teu Pai, da graça que tinha. Da senhorial presença de tua Mãe. Do amor que tinhas pelos teus filhos. Lembras-te quando o Bernardo levou um coice de um cavalo em Colares? Eu estava lá. Da Margarida, tua Mulher, tua musa.
Lembras-te de quando o Sindicato dos Toureiros te saneou porque abriste um cartaz da manifestação da Maioria Silenciosa em 1974 no Campo Pequeno? Foste tourear para Espanha, reapareceste ameaçado pelos comunistas, davam-te um tiro, e tu estavas lá, a praça toda de pé e tu no meio, como os heróis estão no sítio certo e na hora certa. E as vezes em que falhavas um ferro e ficavas segundos no meio da arena, cabeça baixa, a pedir desculpa? E os ferros de frente, ao piton esquerdo, que paravam corações e provocavam depois explosões na bancada?
E tudo o mais. Zé João? Tudo! Viajei hoje de Évora para Lisboa para estar amanhã de manhã a teu lado. As lágrimas correram-me pela cara abaixo durante a viagem, várias vezes. Lembrei-me de ti e de nós, Zé João. Passei o filme para trás e vi tudo.
Merda, Zé João. Apetecia-me abraçar-te agora. Sei que não vai ser possível. Sei que um dia acontecerá. Mas, até lá, vou ter saudades. Choro por ti, Zé João. Apetece-me, desculpa. Sei que me mandavas à merda, que me dizias para não ser piegas, que me davas um palmadão nas costas. Mas não consigo. Não consigo não chorar por ti. A vida é uma coisa tão bela e tão estúpida. Por que é que havias de morrer assim?
Miguel Alvarenga
Foto João Dinis (Nazaré, 8 de Agosto de 2009, a última ovação)