terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Tu foste bom de verdade!

3 de Novembro, a última aparição pública de Joaquim Bastinhas na Feira da
Golegã e os momentos emotivos do encontro com uma aficionada de 102 anos
que o admirava. Neste dia, deu entrada em Lisboa no Hospital da Cruz Verrmelha
para ser operado a um pólipo nos intestinos. Seguiu-se um calvário de dois
meses
Em Setembro, antes da última corrida, quando percorreu feliz da vida todos os
recantos da sua herdade mostrando-os à administradora do Campo Pequeno
Na praça da Nazaré em Julho deste ano, assistindo à corrida de abertura da
temporada naquele redondel, em que tomou a alternativa a cavaleira Cláudia e
em que actuou e triunfou seu filho Marcos. Em baixo, um dos milhões de
momentos que nunca mais vamos esquecer


Miguel Alvarenga - Sem nunca termos percebido na realidade os porquês, e que importa isso já?, sabíamos que mais tarde ou mais cedo isto ia acontecer. A morte de Joaquim Bastinhas, como ontem escrevi, foi, afinal, a crónica de uma morte anunciada. E porquê? Que importa agora?
Mesmo assim, era a última coisa que eu queria ouvir. Foi o teu velho (e meu) amigo José Boto quem ontem de manhã me telefonou. "Não há nada a fazer, está por horas". E foi também o José Boto quem me ligou pouco depois das seis da tarde, minutos depois de termos tido outra conversa, eu a querer saber, ele a dizer que estava tudo na mesma, que podia ser no minuto seguinte, daqui a uma hora, mas que não passava de hoje. "Acabou tudo, Miguel...". E chorou. E chorei. Merda, Joaquim Bastinhas.
Uma semana antes, na noite de Natal, o Marcos telefonou-me. E chorou. E chorou o telefonema inteiro. Tínhamos todos percebido já que desta vez não havia volta a dar. Mas não queríamos acreditar, não queríamos que fosse possível, tinha que ser uma história inventada, um sonho mau, uma qualquer partida daquelas em que eras único.
Passaste a vida a pregar partidas. E ontem só tu nos podias pregar uma partida tão cruel, tão dura e tão sem senso. Morrer no último dia do ano, a pouquíssimas horas do reveillon. Só mesmo tu, caramba. E nem tempo houve para uma despedida, um breve adeus que fosse, um último sorriso daqueles em que irradiavas vida, alegria de viver e contagiavas todo o mundo.
Lembras-te quando um dia nos zangámos, nada a ver directamente connosco, uma história estúpida, os amigos também se zangam, e depois demos um abraço numa noite de entrega de troféus do "Farpas" em Monsanto e o Emílio até nem conseguiu tirar a foto, desatou ele a chorar de tão comovido que ficou?
Lembras-te daquela viagem a Madrid, quando foste tourear a Las Ventas e à saída da praça fomos todos presos pela Polícia porque alguém da comitiva dos portugueses tinha pago um arranjo numa oficina com pesetas faltas? O que rimos e o que passámos...
Lembras-te quando em tua casa, com a Lena, me mostraste todo orgulhoso, no berço, o teu filho Marcos acabado de nascer?
Foram tantas e tão fantásticas as históricas que vivemos juntos em quarenta anos que é isso, Joaquim Bastinhas, que me dá agora forças e me seca a merda das lágrimas quando penso que não me vais ligar mais.
Foste um Toureiro enorme. O mais popular, o mais querido. Um ídolo do país. Já não ídolos assim.
Foste um lutador. Ainda me lembro, no princípio, e tu lembras-te melhor que eu, quando diziam que Bastinhas era nome de artista cómico. E tu, indiferente a essas coisas, te forte afirmando, foste subindo os degraus, tarde após tarde, subindo a pulso a escadaria da fama e da glória, até te reconhecerem como primeira figura, mal entravas na arena já as palmas se ouviam, nenhum era igual a ti e por isso mesmo marcaste a diferença e foste único.
É um lugar comum dizer-se o que eu vou dizer, mas com a tua partida partiu um pouco de todos nós. Perdemos todos qualquer coisa que era nosso. Os que contigo tiveram a honra de conviver de perto. Os que nas praças te aplaudiram e desfrutaram tantas vezes, muitas mesmo, das alegrias que lhes proporcionaste. Alegrias, mesmo. Tu eras uma alegria, uma força que arrastava o mundo, viveste sempre a correr, fizeste tudo sempre cheio de pressa, até parece que o mundo ia sempre acabar amanhã.
Superaste todas as mazelas do estúpido acidente de há três anos. Voltaste a tourear, ao menos não morreste sem voltar a tourear. Na Figueira e em Elvas voltaste a ser a tal força, a força indomável que move montanhas e por isso mesmo nunca nenhum outro toureiro fizera tanta falta à Festa como tu. Tinhas programado mais corridas para este ano, tinha ficado acertada a reaparição no Campo Pequeno, tantos sonhos, tanta ilusão que alimentavas para 2019 e de repente acaba assim tudo.
O meu telefone não parou ontem. Os telefones de toda a gente deste mundo dos toiros não pararam mais. "É verdade?", "como foi possível?", "não quero acreditar...".
As palavras vão-se soltando no teclado, continuo sem saber o que escrever mais. Vou-te recordar para sempre porque há Homens que não morrem nunca. Todos te vão recordar nos seus corações.
A alegria com que estavas na tarde da última corrida em Elvas, nesse Setembro que já ficou para trás. A força com que te aplaudiu o público da tua terra, que te amava. te idolatrava e hoje há-de sair à rua para te dizer um último adeus.
E que ser humano fantástico tu foste, tinhas um coração do tamanho do mundo ou maior. Foste um doido, somos todos. Mas foste um grande marido, um enorme pai, um avô super babado e querido, um filho carinhoso, um irmão dedicado, um genro sempre presente. E um Amigo único.
Está aí o Marcos para continuar a tua obra. Por mais vontade que nesta hora possa ter de desistir e de não pensar mais em touradas, sei que ele há-de ir em frente e te prestar a maior das homenagens mantendo vivo nas arenas o apelido que leva aos ombros. A História que tem atrás.
Mais logo já me despedirei de ti, Joaquim Bastinhas. E depois fica a saudade. E ficam as memórias, os momentos de uma vida que muitas vezes partilhámos em ocasiões tão especiais e que agora eu lembro enquanto estou aqui feito parvo, em frente do computador, a querer escrever tudo o que não consigo, a querer dizer-te tudo o que me apetece e não sou capaz de dizer.
Os que morrem são sempre muito bons. Mas tu foste bom de verdade.
Até um dia, meu querido Amigo. E obrigado.

Fotos Frederico Henriques/@Campo Pequeno, Emílio de Jesus e D.R.