sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Génio de outra galáxia: Moura a anos luz do pelotão!

Noite de apoteose ontem no Campo Pequeno, apesar de todas as reticências que os verdadeiros aficionados do risco e da emoção punham aos toiros "colaborantes" de Romão Tenório. Quando os toureiros têm valor e arte, também pode acontecer emoção com os Murubes. Moura a léguas do pelotão e a anos luz de tudo e todos. Telles a reafirmar-se como figura e ambos a protagonizarem, quarenta anos depois, a mesma competição vivida por seus pais. Caetano ontem sem sorte, mas também sem a inspiração de sempre. Pombeiro triunfador uma vez mais. Temporada de Lisboa segue em clima de euforia e apoteose e em crescendo. A Tauromaquia de novo em grande, mesmo em tempos de anormalidade

Miguel Alvarenga - Ontem olhei para eles e lembrei-me, veio-me tudo outra vez à memória. Quarenta anos depois. Moura, Caetano e João Telles. Lá estavam os três, graças a Deus, agora a sofrer e a torcer pelos filhos. Como se fosse ontem. E agora era hoje.

O mesmo clima, os mesmíssimos adjectivos que usei ao tempo e agora posso usar, iguaizinhos, em relação aos filhos. Três Toureiros grandes. Enormes. Cada qual com seu estilo, cada qual com a sua influência, o seu status. O tempo voltou atrás. E a História repete-se, repete-se sempre.

Moura, agora na versão júnior, João na mesma, génio igual, "niño" sempre e "prodígio" cada vez. mais. Líder incontestado do pelotão, léguas à frente de todos, anos luz adiante, a reafirmar o seu estatuto de primeiríssima figura do toureio actual, como há quarenta anos o fez seu pai e ontem foram para ele umas das maiores ovações da noite, calorosas, todos de pé a homenagear e a aplaudir meio século de glória, quando o Joãozinho lhe brindou e lhe atirou o tricórnio, depois de ter brindado também essa sua segunda e estrondosa lide a dois outros monstros do toureiro, o António Telles e o Diego Ventura. Atirou-lhe o tricórnio e o Maestro recebeu-o de lágrimas nos olhos, emocionado até mais não e a praça toda em pé, quais galgos e quais arremessos de uma culpabilidade condenada antes do tempo, todos lamentamos, todos somos contra, mas nada, nada mesmo, pode fazer esquecer cinquenta anos de apoteose nas arenas do mundo inteiro, meio século de uma lei sem fim, a aperfeiçoar e perfeição todos os dias, a consolidar e revolução - e o resto foram sempre cantigas.

E os toiros de Romão Tenório, que muitos condenavam também à partida, serviram às mil maravilhas para o toureio-arte dos três meninos. Não têm a agressividade que transforma a arte em risco e emoção, não têm a transmissão que provoca suspiros e gritos nas bancadas, mas também não foram propriamente "toiros de corda" e proporcionaram, a quem gosta e todos gostaram, uma noite de temple, de arte, uma noite diferente mas agradável de seguir, passo a passo, recorte a recorte, momento a momento. Dois foram "indultados", o segundo da noite, primeiro de Moura Júnior, esse não sei bem porquê; e o último, com que Telles brilhou a toda a prova, esse sim, um toiro bom dentro da linha Murube e das características que estes toiros têm. São toiros "mais amiguinhos" dos cavalos e dos toureiros do que os agressivos Graves ou Teixeiras. Mas quem foi ontem ao Campo Pequeno sabia que eram toiros assim - e foram na mesma. E encheram a lotação possível nestes tempos atípicos e distintos de pandemia terrível e incómoda em que, por obra e graça do meu querido amigo Luis Miguel Pombeiro, não me cansarei de o dizer, de o cantar, de o enaltecer, tudo voltou quase a ser como era dantes.

Enorme e a marcar a diferença, Moura lidou como só ele sabe o segundo toiro da noite, a que faltou chama e transmissão, mas a que o génio do toureio actual deu tudo e mais alguma coisa, demonstrando que estava ali para se afirmar, para se reafirmar e se (re)consagrar. Lide importante, mas não tão redonda como se queria, no entanto a dizer que quem ali estava era uma primeiríssima figura do toureio mundial. Como há quarenta anos a todos o disse seu pai.

No quinto da noite, foi o estrondo. Moura empolgou, galvanizou, pôs a praça em delírio e de pé a aplaudi-lo. Foi tudo perfeito, perfeito demais. A brega, a lide, o ir de frente a dobrar o piton contrário, a entrar pelo toiro dentro, rematando com a arte e o temple que dele fazem nos dias que correm um caso único do toureio a cavalo, a anos luz do pelotão. A História repete-se. E Moura é sempre Moura. E esta será sempre a sua praça, como foi e é a praça do Maestro. Loucura nas bancadas com as duas "mourinas" finais, tudo de pé. Igual não há, nunca houve. Quem pode, manda. 

Há quarenta anos vivi, com a mesma emoção de ontem, a competição de Moura com Telles. E também aqui a História se repetiu. João Ribeiro Telles é todo ele um monte de ganas, de arte, de garra e de valor. O terceiro toiro da noite serviu, sem ser propriamente um exemplo de bravura, para que o novo Telles fizesse e escrevesse arte na primeira arena do país. Respondeu a Moura com todas as letras e triunfou forte com uma actuação vibrante, em crescendo e sem tempos mortos. O último ferro curto, de praça a praça, foi empolgante. Do outro mundo.

No sexto e último toiro da corrida, um exemplar de Romão Tenório com algum génio e mais transmissão, João Telles deixou bem claro que não gosta de perder nem a feijões - e não perdeu mesmo. Aparatosamente colhido por o cavalo ter escorregado à saída de um ferro enorme em terrenos de grande compromisso, recompôs-se, agigantou-se, foi buscar o fantástico cavalo Ilusionista e os dois últimos ferros que cravou, a atacar o toiro, em terrenos quase sem saída, foram dois monumentos à ousadia, ao risco e ao valor. E à verdade. E à emoção, que mesmo com toiros Murube, pode acontecer - e aconteceu.

João Moura Caetano, o cabeça de cartaz, não alcançou ontem os triunfos sonhados. Lidou com brilhantismo, mas sem a inspiração habitual, o primeiro toiro da corrida, de nota "mais ou menos". E teve depois o azar de lhe tocar, em segundo lugar, a fava da noite, um toiro manso perdido e parado, com arrancadas de perigo e que não lhe deu as mínimas opções de brilhar, nem mesmo com o esforçado e fantástico cavalo Campo Pequeno. Houve, isso ninguém o pode negar, empenho, esforço e entrega do toureiro para sacar tudo onde nada havia. E por isso não entendi a reacção do director de corrida Ricardo Dias em lhe negar o lenço que lhe permitia ir à arena saudar o público, que o aplaudiu entre tábuas, reconhecendo o valor de tudo ter feito onde nada havia para fazer.

Dos forcados já esta madrugada aqui falei detalhadamente e está tudo dito. Noite grande do Aposento da Moita na comemoração em Lisboa dos seus 45 anos, com três pegas à primeira do cabo Leonardo Mathias e de Martim Lopes e João Ventura, três forcados de eleição. Noite menos feliz dos Amadores de Évora, marcada pelo pegão do cabo João Pedro Oliveira e mais duas pegas, ambas à terceira e não propriamente formidáveis, por António Alves e Ricardo Sousa. Bem a rabejar, como sempre, o poderoso Manuel Rovisco.

Resumindo e concluindo, noite grande, apoteótica mesmo, a marcar a temporada do Campo Pequeno e do país, mais um triunfo do empresário Pombeiro e do seu empenho em marcar a diferença num ano em que tudo está diferente.

Ao início da corrida foram homenageados D. Francisco de Mascarenhas - pena ninguém ter conseguido entender as certamente bonitas palavras de Manuel Andrade Guerra, resolvam de uma vez por todas e quatro antes esse problema do som, se fizerem a fineza - e o Aposento da Moita e foi guardado um minuto de silêncio em memória do campino Carlos Custódio, que morreu esta semana com 86 anos e deixou a Lezíria e o mundo dos toiros mais pobres - e mais tristes.

Uma última palavrinha para voltar a condenar essa incompreensível norma da "nova (a)normalidade" de não permitir a presença na trincheira dos grupos de forcados nos toiros em que não vão intervir. Pelo menos no Campo Pequeno, há condições de sobra para evitar essa falta de consideração e de respeito por aqueles que são os grandes românticos e uns dos maiores pilares da razão de ser da nossa Festa. Senhores da IGAC, façam a fineza de corrigir rapidamente essa estupidez. 

Tenho dito. E viva Moura, o número-um. E viva Telles, um grande Toureiro. Viva Pombeiro e o Campo Pequeno. Toque-se o Hino. Todos de pé! E outra vez, como ontem, a aplaudir com a força com que o fizeram, o Maestro dos Maestros, ainda e sempre João Moura. Na Barquinha lá estarei - lá estaremos todos!

Fotos M. Alvarenga



Campo Pequeno ao rubro, público de pé, em verdadeira apoteose,
a aplaudir Moura e Telles! 40 anos depois, a História repete-se