40 anos depois, a morte do primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro e do ministro da Defesa Adelino Amaro da Costa continuam envoltas em mistério. Durante alguns anos, fiz parte da equipa liderada por Augusto Cid que investigou Camarate no jornal "O Diabo". Quatro décadas passaram e, por mais incrível que pareça, por mais suspeitas e por mais indícios recolhidos, nunca se chegou a conclusão nenhuma... Ou melhor: nunca quiseram chegar a conclusão nenhuma
Miguel Alvarenga - 4 de Dezembro de 1980. Passam hoje 40 anos. Era há três anos chefe de Redacção do semanário "A Rua", dirigido por Manuel Maria Múrias, mas tinha já negociado e acertado com Vera Lagoa o meu regresso a "O Diabo" (onde me iniciara em 1976, na sua fundação) a partir de 1 de Janeiro do ano seguinte, um mês depois. Tinha combinado nessa noite jantar com o meu amigo Vitor Escudero.
Acabava de chegar a casa, vindo do Hotel Altis, da conferência de imprensa da Aliança Democrática, onde tinham estado Francisco Sá Carneiro, Diogo Freitas do Amaral e o General Soares Carneiro, o candidato da AD às eleições presidenciais. O ambiente era tenso, adivinhava-se já, a poucos dias do acto eleitoral, a vitória do General Ramalho Eanes e Sá Carneiro - que, sem saber, acabara de participar no seu último acto político - ameaçara demitir-se do cargo de primeiro-ministro se o seu candidato fosse derrotado. Do Altis seguiria com Snu Abecassis para o Aeroporto de Lisboa, onde voaria para o Porto com Amaro da Costa, ministro da Defesa, para participarem no comício de encerramento da campanha.
"Morreu o Sá Carneiro!", disse-me o meu avô mal entrei em casa. Fiquei estupefacto. "Morreu como? Ainda agora vim da sua conferência de imprensa...". "Caíu o avião em que ia para oi Porto", respondeu-me o meu avô. Corri para a sala e fiquei colado à televisão.
Não tinha uma enorme simpatia política por Sá Carneiro. Nesse mesmo ano, em que a sua AD ganhara as legislativas com maioria absoluta, eu tinha sido candidato (nº 2 por Santarém) pela Frente Nacional na coligação integrada ainda pelo MIRN e pelo PDC.
Falara uma única vez com ele numa daquelas maratonas que eram, ao tempo, as noites eleitorais passadas na Gulbenkian. Fumava um cigarro e bebia um café ao balcão quando o cumprimentei, me identifiquei como jornalista de "A Rua" e lhe fiz algumas perguntas. Tinha um olhar penetrante, era um político astuto, cativava.
Entretanto tocou o telefone. Era o meu director Manuel Múrias. "Onde estás, puto?", tratava-me sempre assim. "Vai já para Camarate!". Liguei ao Vitor Escudero. "Apanha-me em casa e vamos a Camarate!". O Vitor tinha um Honda 600. Fomos.
O cenário era dantesco. Cheirava horrivelmente a queimado, havia bocados do avião espalhados pela rua, uma asa contra um prédio, muitos polícias e uma imensa multidão de curiosos, entre alguns jornalistas. No chão, tapados com cobertores, estavam os corpos carbonizados das vítimas: Francisco Sá Carneiro e Snu, António Patrício Gouveia (chefe de gabinete do primeiro-ministro), Adelino Amaro da Costa e sua Mulher, Maria Manuel Simões Vaz da Silva Pires e os pilotos Alfredo de Sousa e Jorge Albuquerque. São imagens que não se esquecem mais.
Se bem me lembro, ceámos a seguir no "Galeto". Ou mal comemos. Todo o mundo estava em choque. Na manhã seguinte fui cedo para o jornal e fiz a reportagem, contei o que vira e sentira naquela dramático cenário em Camarate no Bairro das Fontainhas. Manuel Múrias sugeriu a capa da próxima edição: de alto a baixo, as fotos de Sá Carneiro e Amaro da Costa e um título único - "Presentes!".
No dia 1 de Janeiro recomecei a trabalhar no jornal "O Diabo". Augusto Cid, Nuno Rogeiro e Noberto de Andrade compunham o núcleo duro da equipa que estava a investigar Camarate. A que me juntei, por sugestão da Maria Armanda (Vera Lagoa).
Seguiram-se meses, anos, de investigações, andei com o Cid por todo o lado, lembro-me de termos entrevistado na Av. Almirante Reis a irmã de Lee Rodrigues, o suspeito (até hoje) de ter colocado a bomba no Cessna. Entrevistei várias vezes José Esteves, que em todas as entrevistas que deu, incluindo às televisões, assumiu ter sido o fabricante do engenho explosivo que terá provocado a queda do Cessna em Camarate momentos depois de ter descolado da Portela. Acompanhei as inúmeras Comissões de Inquérito na Assembleia da República - que nunca serviram para nada, apesar das conclusões que apontavam sempre para um atentado e nunca para um acidente.
Houve ao longo de todo o processo indícios mais que suficientes, assim como muitos equívocos e demasiadas omissões, que apontavam para atentado. Mas nunca ninguém foi mais além...
Escreveram-se vários livros a tentar provar isso mesmo. Augusto Cid escreveu o primeiro. Depois outro. E a seguir vieram muitos mais. Nos últimos anos, os mais importantes terão sido o do jornalista Frederico Duarte Carvalho, que aponta o negócio das armas para o Irão como a grande causa do atentado; e agora o de Alexandre Patrício Gouveia (irmão do chefe de gabinete de Sá Carneiro, uma das vítimas) intitulado precisamente "Os Mandantes do Atentado de Camarate - O Envolvimento Americano".
Camarate continua a incomodar. Mas...
A 5 de Janeiro de 1983, a três dias de ir fazer "acusações e revelações explosivas" na primeira Comissão Parlamentar de Inquérito a Camarate (assim o dissera dias antes a Augusto Cid), José Moreira (co-proprietário do Cessna, com seu irmão Nuno) foi encontrado morto, com a namorada, Elisabete Silva, num apartamento em Carnaxide. Chamaram-se a oitava vítima de Camarate.
Houve, ao longo dos últimos 40 anos, ingredientes de sobra para um filme policial. Indícios a mais para justificar uma investigação a sério - que nunca foi feita. Ao longo das nossas investigações para "O Diabo", sucederam-se inúmeras ameaças de morte, o que só por si explica que havia muita gente interessada em que a verdade nunca fosse descoberta.
Há 40 anos, numa noite como esta, morreram o primeiro-ministro e o ministro da Defesa de Portugal. E quatro décadas passadas, Camarate continua a ser um monte de suspeitas sem fim. Um mistério eterno. Parece irreal. Mas é verdade.
Fotos D.R.