sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Toureio a pé: há 40 anos que não se via nada igual no Campo Pequeno...

"Finito de Córdoba", Juan José Padilla e o nosso Manuel
Dias Gomes
protagonizaram ontem à noite no Campo
Pequeno uma das mais apoteóticas noites da temporada
O temple, a suavidade, a arte de "Finito de Córdoba". Duas faenas como
há só duas...
O brinde de Padilla a Chibanga fez explodir o público numa calorosa ovação
ao matador português
Padilla no quinto toiro dando a volta com o ganadeiro Manuel Veiga
Palavras para quê? Juan José Padilla consagrou-se ontem como o novo e
incontestado ídolo da afición lisboeta. Campo Pequeno revive os anos de ouro
de "Paquirri", Dámaso González, "Currillo", "Capea" e Ruiz Miguel
Momentos da sinfonia de arte de Manuel Dias Gomes, que no sexto e último
toiro deu segunda volta acompanhado do ganadeiro Carlos Veiga. Em baixo,
Padilla cruzando a porta grande aos ombros, pela segunda vez esta temporada


Nada vai ser como dantes, depois da apoteótica noite do toureio a pé ontem no Campo Pequeno. Lisboa tem indiscutivelmente um novo ídolo, como o foram "Paquirri" e Dámaso González. Chama-se Juan José Padilla, pode com todos os toiros, faz deles o que quer e é um exemplo de entrega, de profissionalismo e de fé. O toureio a pé nacional tem uma estrela nova. Chama-se Manuel Dias Gomes e está apto a competir com quem quer que seja de igual para igual, como ontem aconteceu. E no Campo Pequeno paira ainda o perfume da arte, do temple e da quietude de "Finito de Córdoba", um Maestro. A ganadaria de Manuel Veiga é das melhores para o toureio a pé - ficou provado. Temos os melhores bandarilheiros do mundo. E daqui por anos não se esqueçam de Rui Bento e de Paula Mattamouros - porque foram eles quem fez ressurgir nesta cantinho à beira-mar plantado o gosto e a paixão pelo toureio a pé. Já chega de mais-do-mesmo, já estamos fartos de gramar os cavalos a correr e as meninas a aprender...

Miguel Alvarenga - Quarenta e mais alguns anos depois de “Paquirri”, Dámaso González, “Currillo”, “Niño de la Capea” e Francisco Ruiz Miguel, Lisboa e o Campo Pequeno têm de novo um ídolo carismático capaz de arrastar multidões às bancadas da primeira praça do país. Na sua segunda intervenção na temporada lisboeta, depois do sucesso apoteótico de Julho, o jerezano Juan José Padilla voltou ontem a empolgar. Deu outra vez cinco voltas à arena - duas no primeiro toiro e três no segundo - e mais daria, que o público estava ali disposto a aplaudi-lo, e voltou a sair em triunfo aos ombros pela porta grande (foto ao lado).
A noite de ontem não foi só de Padilla, mas foi essencialmente de Padilla - e também do finíssimo Juan Serrano “Finito de Córdoba” e da nova estrela lusa do toureio a pé, o artístico Manuel Dias Gomes. Triunfo grande, também, da ganadaria de Manuel Veiga - que deu merecida volta à arena no quinto e no sexto se fez representar por seu filho Carlos em idêntica e justificada honraria.

Jóia, o público e toiros fantásticos

Para o êxito de tão memorável corrida - sem dúvida, nos últimos quarenta anos, a mais importante jornada do toureio a pé na capital e mesmo em Portugal - contribuiu decisivamente a extraordinária e aficionadíssima direcção de Rogério Jóia. E, honra lhe seja feita, também o entusiasmo, o carinho e todo o empenho do público, composto por verdadeiros aficionados, a demonstrar que o toureio a pé ressurgiu definitivamente entre nós e volta a ter um lugar de destaque obrigatório nas nossas praças, passados que parecem estar, e estão, os - eventualmente - anos de ouro do toureio equestre, hoje reduzido a meia dúzia de reais valores, se tanto, e baseado sobretudo em cartéis e elencos que são sempre mais do mesmo… e já chateiam.
Exceptuando o terceiro, primeiro do lote de Dias Gomes, um toiro de investidas violentas e sem a classe, a qualidade e a nobreza dos restantes, os exemplares da ganadaria de Manuel Veiga mereceram nota alta. A ganadaria está em pleno e há muito que merecia ser lidada só a pé, como ontem aconteceu. Além do excelente comportamento, os toiros estavam muito bem apresentados, verdadeiras estampas para fazer sucesso em qualquer praça do mundo. Investiram, investiram e fartaram-se de investir com classe e muita nobreza nos capotes e nas muletas (de ouro) dos três matadores.
Ao contrário do que vaticinavam os costumeiros Velhos do Restelo, e até os novos, a praça registou ontem uma enchente de três quartos e foi a quarta corrida com mais público das doze que até agora se realizaram esta temporada em Lisboa - ou seja, as corridas mais povoadas foram as duas de Pablo Hermoso e as duas de Padilla. Mais palavras para quê?…
Primeira lição: afinal, nem só de forcados e cavaleiros vive a Festa em Portugal. Segunda lição: Padilla é, quatro décadas depois de “Paquirri” e Dámaso González, de “Currillo” e também de “Capea” e Ruiz Miguel, o novo ídolo incontestado do público do Campo Pequeno no que ao toureio a pé diz respeito - a par de Pablo Hermoso de Mendoza, o renovador rejoneador que já conquistou há muito os corações dos aficionados lusos. Terceira e última lição: vinte anos depois do “boom” de Pedrito, Portugal tem uma nova estrela do toureio a pé, assim o entendam os empresários e assim saibam eles aproveitar o filão e apostar neste artístico e valoroso Manuel Dias Gomes. Que bem toureou, e com que arte o fez, o último toiro da noite!

Padilla: terramoto, tsunami, sei lá...

Padilla é uma força da natureza. “El sufrimiento és parte de la glória…” (“O sofrimento é parte da glória…”) lê-se nos postais do toureiro jerezano distribuídos ontem no Campo Pequeno. Padilla superou todo o sofrimento depois da gravíssima cornada que lhe roubou o olho esquerdo. Tornou-se um exemplo para o mundo. E hoje é muito mais que um simples ser humano. É um verdadeiro terramoto, um tsunami, sei lá, o que lhe queiram chamar, arrasa por onde passa.
Não venham agora os pseudo-entendidos fazer crer que Padilla deu só o seu show e que quem toureou foram os outros dois - porque não é verdade.
Padilla voltou ontem a ser um monstro de entrega, de profissionalismo, de saber estar. Não precisa já de provar nada a ninguém. Acham que precisava de receber os seus dois toiros de joelhos em terra, com “largas afaroladas” de arrepiar? Precisava de iniciar a primeira faena de muleta com o fez, com “derechazos” e mais “derechazos” superiormente ligados, outra vez de joelhos em terra?
Não precisava, obviamente. Mas fê-lo porque é assim que se (re)conquista o público. E Padilla já conquistara o público lisboeta em Julho, agora limitou-se a consagrar-se como ídolo absoluto do Campo Pequeno.
Com as bandarilhas esteve fenomenal. Um par incrível no primeiro toiro e dois “violinos” que levantaram a praça. Repetiu a dose no segundo toiro. Com a muleta, fez alarde do que é na realidade mandar. Domínio total, séries pela direita e pela esquerda, remates de sonho, desplantes de ousadia. Não é tourear? Então eu vou ali e já volto e espero que um entendido me ensine e me elucide…

O valor e a arte de Manuel Dias Gomes

Juan José Padilla deixou a fasquia altíssima e o valor de Manuel Dias Gomes, que toureou sempre a seguir às apoteóticas faenas do jerezano, foi precisamente esse, o de saber e conseguir e ter arte para se impôr depois de um vendaval daqueles.
Esteve Manuel muito seguro de si e muito toureiro no seu primeiro toiro, o mais complicado, de violentas investidas e algo desconcentrado na muleta, procurando o vulto. Manuel Dias Gomes toureou-o com arte e com saber, demonstrando, apesar de pouco tourear, estar placeado e preparado para o que der e vier. Faena esforçada, mas com apontamentos de muita tarde, que o público reconheceu e aplaudiu, premiando o novo matador com volta à arena.
No último toiro da noite, de muito melhor nota, Manuel Dias Gomes esteve muito bem e variado com o capote e deu depois um autêntico e muito bonito recital de arte com a muleta, destacando-se em “derechazos” e “naturais” desenhados com arrepiante lentidão, a muleta “desmaiada” na mão mandona do artista, o público em delírio e a nascer ali uma vedeta nova que pode e deve ir em frente e contribuir também em decisivo para esta época de renascimento do nosso toureio a pé. Força, Manuel!

"Finito": até a pisar a arena é toureiro!

Deixei para o fim “Finito de Córdoba” - e fi-lo de propósito. A comemorar vinte e cinco anos de alternativa, amadurecido, senhor de uma arte e de um temple que não são para todos e sempre destacaram entre a multidão os eleitos, Juan Serrano vinha ontem de negro vestido, a meu ver, algum mau gosto, mas também uma forma de marcar a diferença, sem que o negro tivesse alguma coisa a ver com tristeza ou mesmo apatia face ao colorido dos trajes dos companheiros, nada disso.
“Finito” é um artista e marca mesmo a diferença. Até na forma de atravessar a praça, na lentidão com que dá a volta à arena, vê-se a léguas que vai ali um Toureiro diferente dos outros. Foi assim, ontem, como fora assim em Fevereiro, quando encantou tudo e todos no Festival L.Vida de Helena Ribeiro Telles.
Toureou divinalmente os seus dois toiros, evidenciando toda a maestria e a beleza rara da sua imensa tauromaquia. Chegou menos ao público que Padilla, o que é natural, são toureiros de estilos totalmente distintos e talvez mesmo opostos. Mas toureou de maravilha e deixou a sua marca, outra vez, bem marcada no Campo Pequeno.
Padilla saíu aos ombros, “Finito” e Dias Gomes sairam no meio de calorosa ovação, o toureio a pé saiu enaltecido, renascido e engrandecido desta tão memorável jornada.

Grandes, os nossos bandarilheiros!

Porque justo e merecido, há que destacar os brilhantes tércios de bandarilhas, brilhantes mesmo, executados pelos bandarilheiros portugueses de Manuel Dias Gomes: Joaquim de Oliveira e João Ferreira no terceiro toiro da noite, Cláudio Miguel e de novo João Ferreira no último. Impecáveis, extraordinários. Agradeceram de montera em mão os aplausos reconhecidos de um público que os honrou de pé - como eles mereceram. Grandes Toureiros!
Em contrapartida, há a lamentar a péssima actuação dos bandarilheiros de “Finito” - nunca entendi porque razão as grandes figuras do toureio espanhol nunca cuidam esse imprescindível pormenor de ter na sua equipa bons bandarilheiros, por forma a não se correr o risco de nesse tércio, pelo seu mau desempenho, se poder manchar uma actuação.
Três brindes importantes: o de “Finito” ao ainda lesionado António Ferrera, que assistiu ontem à corrida na trincheira com o também matador Javier Solis; o de Dias Gomes aos seus dois companheiros de cartel; e o de Padilla ao Maestro Ricardo Chibanga, que fez explodir a praça numa calorosa e carinhosa ovação ao antigo toureiro moçambicano, talvez mesmo o maior acto vivido nos últimos anos no Campo Pequeno de reconhecimento a um toureiro antigo dos nossos.
Nota final, uma vez mais, à excelente direcção de corrida desempenhada por Rogério Jóia, antigo praticante do toureio a pé e, por isso mesmo, o homem certo, ontem, no lugar certo. Aficion, saber, bom senso e equilíbrio, reconhecimento, também, pelo valor dos toureiros e pela qualidade dos toiros, marcaram pela positiva a direcção de Rogério Jóia. Ao início do espectáculo, foram interrompidas as cortesias ou "paseillo" (à espanhola, poir claro) a fim de se render homenagem póstuma, com um respeitoso minuto de silêncio, a Eduardo Salvação Barreto, falecido na semana passada e que era o último elemento vivo da fundação dos Forcados Amadores de Lisboa, irmão do célebre cabo-fundador do grupo, Nuno Salvação Barreto.
Por fim, um aplauso à empresa. Por que merecido. Por que, mais que merecido, se impõe. Houve sorte, mas a sorte nunca acontece por acaso, trabalha-se, luta-se por ela. E esta empresa tem lutado - e ganho batalhas - pela reimplantação do toureio a pé. “El Juli” marcou no ano passado, Morante e Padilla reafirmaram este ano e Juan del Álamo tem também sido um pilar importante na reconquista do lugar a que o toureio a pé já teve direito entre nós. Houve um antes e um depois de “El Juli”. Há agora, declaradamente, um antes e um depois de Padilla. Depois de ontem, já nada vai ser como dantes. Tudo se transformou. Tudo mudou. O toureio a pé tem outra vez um lugar de destaque e uma presença obrigatória nos grandes acontecimentos de cada temporada. Seja em corridas mistas, seja em corridas “à espanhola”, como a de ontem. Mas que seja.

Fotos Maria Mil-Homens