Miguel Alvarenga - Querer é (mesmo) poder! Luis Rouxinol e Rui Fernandes são disso os maiores exemplos, nos últimos anos, na História do toureio a cavalo. Vieram do nada e são tudo! Chegaram cá sem nome sonante, sem fazerem parte de dinastia afamada, só eles, sózinhos e apenas com a família e os amigos na rectaguarda, mais a sua vontade, o seu imenso querer e a rara intuição com que, ano após ano, se foram impondo e afirmando, contra ventos e marés, contra boicotes de alguns dos instalados, contra aqueles que os quiseram travar, acabando por vingar e chegar ao galarim dos primeiros, sendo hoje duas das mais importantes figuras da Tauromaquia.
Ontem juntaram-se naquele que era, à partida e pela primeira vez, um dos mais atraentes cartéis da temporada, tendo a seu lado os respectivos sucessores, Luis Rouxinol Jr. e Duarte Fernandes (sobrinho de Rui), num formato de corrida familiar tão do agrado do público.
Foi no Montijo, terceira corrida da temporada do reinado da nova empresa composta por José Luis Zambujeira e João Anão Madureira - e a praça encheu. Uma moldura humana incrível, mais de três quartos da lotação preenchidos, um ambiente selecto e de muito glamour, a lembrar tempos passados da nossa Festa, um público entusiasta e entregue aos artistas, uma noite das que ficam na História.
Para o sucesso de tão empolgante jornada contribuíram decisivamente os toiros - todos jaboneros, de pelagem branca - da ganadaria Canas Vigouroux, bem apresentados (diferentes, pelo menos), com raça, a empregar-se, com presença, exigentes e a transmitir um (não muito grande) toque de emoção. Destoou apenas o segundo, lidado por Rui Fernandes, que, como os restantes, entrou em praça cheio de fulgor e com muita pata, mas depois veio a menos, quase se apagou no final da lide.
Luis Rouxinol abriu praça em plano de Maestro, como é seu timbre usual. Foi, e continua a ser, ao longo de 35 anos de alternativa, por mais incrível que isso possa parecer, um toureiro sem fracassos, pelo menos sem grandes fracassos, um toureiro que "não sabe estar mal" e que nunca defrauda, que se entrega, que se empolga, que se agiganta em praça - e triunfa sempre, defendendo a posição e o estatuto que alcançou subindo a corda a pulso. Brega a evidenciar sabedoria, ferros de muita verdade, aproveitando as francas investidas do toiro, remates de arte, o sempre exigido par de bandarilhas, de frente, e depois mais um ferro de palmo. Público em alvoroço, todos de pé a aclamar e a homenagear uma actuação de enorme brilhantismo, mas ontem, sobretudo, a reconhecer e a aplaudir uma trajectória de grande glória.
Rui Fernandes brindou a Luis Rouxinol, a seu Pai e a seu filho. É um toureiro com uma história parecida, também veio do nada e conseguiu vencer, impondo-se pela diferença do seu toureio ousado e de um valor sem fim, pelo seu tremendo querer. Os bandarilheiros praticamente não intervieram na lide, foi ele que fez tudo. Recebeu o toiro com uma empolgante sorte de gaiola, cravou de praça a praça, aguentou depois a fortíssima carga do oponente e dobrou-se com maestria até o parar. Seguiram-se ferros daqueles que criam o alvoroço nas bancadas, entrando pelo toiro dentro, pisando terrenos de arrepiar. Pena que o toiro viesse a menos e se apagasse na fase final da lide. Mas não se apagou o toureiro!
O terceiro toiro, um Canas Vigouroux também com entradas de leão e que foi crescendo ao longo da lide, foi primorosamente lidado por Luis Rouxinol Jr., o cavaleiro que nos últimos anos mais depressa e com maior solidez alcançou o patamar dos eleitos em menos anos de alternativa. Brindou a sua Avó e alcançou um triunfo espectacular. Em noite de celebração dos 35 anos de alternativa de seu Pai, o Júnior reafirmou a dignidade e o brilhantismo com que assume e garante a sucessão e a continuidade de uma dinastia que o não era e agora é já das mais relevantes da nossa Tauromaquia. Pôs verdade e emoção em tudo o que fez. Reafirmou a sua raça, todas as qualidade de excelente lidador e bom toureiro - que o caracterizam desde que aqui chegou.
O caso de Duarte Fernandes merece reflexão especial. Pela importância que já tem. E pelo que revela quanto à aparente distracção dos nossos empresários. Todos se queixam de que não há hoje figuras que levem público às praças, de que já não existem ídolos - se calhar ainda não viram este jovem toureiro com olhos de ver...
Duarte Fernandes quase não toureia em Portugal - presumo que por não o contratarem. Não por falta de valor. Será possível que os nossos empresários ainda não tenham dado por ele?...
Ontem, viu-se a força com que chegou ao público - e a resposta que teve do público, que se levantou das bancadas a cada ferro, como que impelido por uma mola. Um toureiro destes não faz falta aos cartéis e às grandes praças?...
Duarte demonstrou maturidade, já muita solidez, confirmou a rara intuição com que nasceu para ser toureiro - e dos bons. Faz lembrar o tio Rui quando apareceu. Tem raça, tem "gancho", tem valor - e tem coração. A forma como lidou, como toureou, como foi de frente à cara do bom exemplar de Canas Vigouroux, são e revelam formas de estar no toureio que começam desde já a marcar a diferença. O Duarte tem tudo para ser figura. E não falta muito para se consagrar como tal.
A corrida terminou com as lides a duo dos Rouxinóis e dos Fernandes. Há quem não goste do toureio a duo, mas há que reconhecer que quando é bem feito, quando existe sintonia, como existiu ontem nas duas, o espectáculo resulta e o público entrega-se. Luis Rouxinol e o filho brindaram a sua lide a José Carlos Nicolau, que foi durante muitos anos bandarilheiro do Maestro. Os Fernandes dedicaram a sua a George Martins, empresário taurino da Califórnia, coudeleiro e ganadeiro e antigo cabo dos forcados Amadores de Turlock, que se encontra entre nós.
Uns e outros estiveram em grande plano e os dois últimos toiros proporcionaram, pelas suas qualidades, que as actuações resultassem em pleno. A corrida terminou com os quatro cavaleiros e as respectivas quadrilhas dando uma calorosa volta à arena com o público todo de pé, em ambiente de total euforia. O esplendor da Festa de volta ao Montijo - em grande!
Nas pegas, de que falarei a seguir mais pormenorizadamente, vitória clara, e com grande distância, dos Amadores de Cascais, com três fantásticas intervenções à primeira tentativa por intermédio de Afonso Marques Jesus, Ricardo Silva e Carlos Dias, com o grupo a ajudar em peso e em força, revelando a excelente forma em que se encontra.
Os anfitriões Amadores do Montijo, grupo que se encontra em fase de renovação, viveu ontem uma noite menos feliz. O primeiro toiro foi pegado à terceira por Ricardo Almeida, a dobrar Hélio Lopes, que se lesionou depois de tentar pegá-lo duas vezes. O terceiro toiro da corrida causou baixas no grupo. Os forcados de cara João Paulo Damásio e Gonçalo Costa recolheram de maca à enfermaria depois de quatro tentativas para o pegar, falharam também as tentativas para consumar a pega de cernelha por Joaquim Consulado e Ricardo Almeida, e o toiro acabou por recolher aos currais sem ser pegado. No quinto, o cabo José Pedro Suissas, forcado de méritos já consagrados, salvou a honra do convento, consumando a pega à primeira tentativa e dando volta aplaudida com os Rouxinóis e o primeiro ajuda.
Presidida por Nuno Canta, presidente da autarquia montijense, e também com a presença de outros autarcas e do provedor da Santa Casa, a histórica corrida de ontem - daquelas que fazem aficionados e marcam uma temporada - foi bem dirigida por João Cantinho, que esteve assessorado pelo médico veterinário Jorge Moreira da Silva.
Foi uma noite com um sabor diferente!
Fotos M. Alvarenga