sexta-feira, 1 de julho de 2016

Lisboa chamou-se Morante

Morante de la Puebla foi ontem o grande protagonista de uma noite de sonho
no Campo Pequeno. Em baixo, Cristina Sánchez, Nuno e Miguel Alvarenga.
Amanhã, não perca todas as fotos dos Famosos


Miguel Alvarenga - Não há escrita que transcreva nem pincéis que descrevam aquilo que foi, como Andrade Guerra bem o classificou no site aplausos.es, uma verdadeira "bebedeira de arte", ontem à noite no Campo Pequeno. Os profetas da desgraça vaticinavam uma tragédia de bilheteira, que ninguém sabia quem é Morante de la Puebla, que se pensava que o nome era o de um conjunto musical e não o nome de um génio do toureio mundial, enfim, que jogava o Ronaldo quase à mesma hora, que isto e que mais aquilo. A empresa esforçou-se pelo sucesso, montou um ecrã gigante fora da praça, permitiu aos "nacionalistas" que pudessem torcer até à última pela Selecção das quinas e a verdade é que já estávamos todos na praça (e éramos, de facto, muitos, três quartos fortes das bancadas preenchidos, um êxito) quando o público explodiu em gritaria porque Portugal ganhara. Odeio futebol, tenho dito. Paciência, que tenham passado aos quartos de final, é isso, não é? mas odeio na mesma. O que interessava era o que vinha a seguir.
O espectáculo arrancou com a sempre bonita intervenção da Charanga a Cavalo da GNR, que nem se enquadrava muito bem neste espectáculo goyesco, mas foi mais um motivo para chamar gente - e chamou.
Morante de la Puebla atravessou depois a arena com o público a aplaudir. Guardou-se um minuto de silêncio em memória de Mestre David Ribeiro Telles e de José Zúquete e a seguir chamaram-no aos médios e brindaram-lhe uma ovação imensa, como que a agradecer-lhe o gesto de ali estar, a honra que nos deu de ter vindo. E mal se sabia ainda que no final chegaria a faena de sonho que ninguém mais vai esquecer.
Começou depois a explosão do que viria a ser uma verdadeira noite de sonho. Incrível a faena ao primeiro toiro de Zalduendo. "El Cigala" foi acompanhando com pinceladas de flamenco, aqui e ali, sempre que se justificava e impunha. A banda nunca tocou, a não ser o hino no fim e um pasodoble quando Morante abandonava a praça entre aplausos que não tinham mais fim.
Rogério Jóia, o aficionadíssimo director de corrida, deu também ontem uma lição de maestria, de sentido de oportunidade e de bom senso. A música flamenca tocou quando "El Cigala" quis, a festa era outra e as regras tinham que ser, apenas e só, as dos protagonistas e de mais ninguém.
O segundo toiro era cego e recolheu aos curros. O sobrero e o seguinte não tinham a mínima qualidade e mesmo assim Morante empenhou-se e esforçou-se para lhes sacar os passes que não tinham, não se limitou a despachá-los, estava a gosto e com gosto.
O último toiro proporcionou-lhe uma séria de "verónicas" e de "chicuelinas" que todos acompanharam com olés e que pareciam saídas de um quadro. Espantoso. Brindou a faena a Pedro Marques, o amigo português que tornou possível esta noite de sonho e magia - e depois, aconteceu arte, temple, silêncio, explosões, flamenco, arte, arte, imensa arte. O primeiro toiro brindara-o a "El Cigala".
Morante fez o que quis e o que sentiu. Resultou tudo ao ralenti, pés parados, só rodava a cintura, a muleta mandona, a arte que ali desenhava passe a passe, uma euforia, uma loucura, qualquer coisa daquelas que se vão lembrar sempre, que ninguém vai mais esquecer. Um conto de fadas, uma noite de magia, o que quer que tenha sido - mas foi diferente. Não volta a acontecer igual.
O Campo Pequeno foi o epicentro da Tauromaquia mundial, como já aqui escrevi. Depois, passearam-no em ombros pela arena, tudo em pé, uma loucura, pelas ruas o haviam de ter levado, sei lá, até aos Jerónimos, ao Padrão dos Descobrimentos, à Torre de Belém, a qualquer lugar que simbolizasse qualquer coisa nossa, assim como ele simbolizou ontem o que é dele, a arte, o temple, a simplicidade com que no final conviveu e partilhou aqueles momentos com os amigos e os convidados que teve a seu lado na ceia que acabou de manhã. Que noite!

Fotos Maria Mil-Homens