Há 50 anos, a canção "Tourada" - com letra de José Carlos Ary dos Santos e música de Fernando Tordo, que a interpretou - ganhou o X Festival RTP da Canção (que foi transmitido em directo, ainda a preto e branco, desde o Teatro Maria Matos, em Lisboa) e criou grande alvoroço no mundo tauromáquico nacional, que não entendeu a letra à primeira, suscitando mesmo uma reacção negativa por parte do então Sindicato dos Toureiros.
O semanário "Expresso" recordou ontem (foto de cima) toda a história da famosa canção que marcou o país e "que toureou a Censura", através de uma peça da autoria de Nuno Galopim (Director de Programas da Antena 1 e curador musical do Festival da Canção) dada à estampa na revista "E".
Foi a 26 de Fevereiro de 1973 que Fernando Tordo cantou a "Tourada" e ganhou o Festival da Canção, a quatro pontos de distância da canção "É Por Isso Que Eu Vivo", interpretada por Paco Bandeira.
A "Tourada" representou depois Portugal no Festival da Eurovisão da Canção, classificando-se em 10º lugar com 80 pontos. A vitória coube nesse ano à canção belga "Baby, Baby" interpretada pelo duo Nicole & Hugo.
A letra de Ary dos Santos, utilizando termos e expressões próprias do mundo tauromáquico, mais não era do que uma metáfora/alegoria em que se comparava a tourada ao regime do Estado Novo e se fazia uma crítica à sociedade de então, havendo mesmo uma alusão à chamada Primavera Marcelista ("Estamos na Praça da Primavera").
Até hoje ninguém entendeu como foi possível que a Censura tivesse deixado passar a canção sem entender que a mensagem de Ary dos Santos era, afinal, não uma crítica às touradas, mas antes uma crítica/sátira mordaz ao regime.
No meio taurino, contudo, houve muitos que não entenderam isso e interpretaram a letra da "Tourada" como uma afronta ao espectáculo - que ao tempo, arrastava multidões às praças de toiros.
Ao "Expresso", Fernando Tordo recordou ontem:
"Numa primeira audição a maior parte das pessoas inferiu que nos estávamos a meter com a tourada e, portanto, aí vêm muitos toureiros protestar, até que se terá percebido que havia apenas uma utilização de terminologia para fazer uma charge social".
E acrescentou o cantor, que ao tempo tinha 24 anos:
"Houve gente que se queixou, da mesma maneira como houve outras pessoas que, mesmo ligadas à tourada, se manifestaram de outra maneira. E um deles é o histórico Diamantino Vizeu, que diz que estavam a ouvir mal porque não se tratava de nenhum insulto".
E conta um episódio curioso:
"Logo a seguir, num evento da Casa da Imprensa, Nuno da Salvação Barreto e um grupo de forcados ofereceram-se para nos proteger porque eu e o Ary dos Santos estávamos à beira de ser agredidos e tivemos que fugir pela porta dos fundos do Coliseu dos Recreios. Esses foram solidários e teriam entendido as coisas já como elas eram. Mas não posso dizer que não há alguma razão, porque numa audição de três minutos, não se consegue perceber tudo e portanto algumas reacções são perfeitamente plausíveis de serem feitas".
O histórico Nuno Salvação Barreto era amigo de Ary dos Santos e relatos da época dão conta de que ambos cearam no antigo "Monumental" depois da vitória da "Tourada" no Teatro Maria Matos. O cabo fundador do Grupo de Forcados Amadores de Lisboa foi dos primeiros a reconhecer que a letra da canção não tinha nada a ver com uma crítica às touradas. Mas outros houve que não reagiram da mesma maneira.
O Sindicato dos Toureiros tomou ao tempo uma posição contra a canção vencedora do X Festival RTP. E o júri de Santarém, por exemplo, terra de toiros e touradas, não deu nem um voto à interpretação de Tordo...
Já lá vai meio século.
Recordamos a letra de Ary dos Santos:
Não importa sol ou sombra
Camarotes ou barreiras
Toureamos ombro a ombro as feras
Ninguém nos leva ao engano
Toureamos mano a mano
Só nos podem causar dano esperas
Entram guizos, chocas e capotes
E mantilhas pretas
Entram espadas, chifres e derrotes
E alguns poetas
Entram bravos, cravos e dichotes
Porque tudo mais são tretas
Entram vacas depois dos forcados
Que não pegam nada
Soam bravos e olés dos nabos
Que não pagam nada
E só ficam os peões de brega
Cuja profissão não pega
Com bandarilhas de esperança
Afugentamos a fera
Estamos na praça da primavera
Nós vamos pegar o mundo
Pelos cornos da desgraça
E fazermos da tristeza graça
Entram velhas, doidas e turistas
Entram excursões
Entram benefícios e cronistas
Entram aldrabões
Entram marialvas e coristas
Entram galifões de crista
Entram cavaleiros à garupa
Do seu heroísmo
Entra aquela música maluca
Do passodoblismo
Entra a aficcionada e a caduca
Mais o snobismo e cismo
Entram empresários moralistas
Entram frustrações
Entram antiquários e fadistas
E contradições
E entra muito dólar, muita gente
Que dá lucro aos milhões
E diz o inteligente que acabaram as canções
Lalalala lala lala lala... lalala lala...
Lalalala lala lala lala... lalala lala...
Lalalala lala lala lala... lalala lala... la la...
Lalalala lala lala lala... lalala lala...
Lalalala lala lala lala... lalala lala...
Lalalala lala lala lala... lalala lala... la la...