sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Tomás Bastos em ombros com Talavante: Vila Franca consagrou a nova estrela do toureio português

Miguel Alvarenga - Posso estar enganado e haver mais, mas creio que Vila Franca de Xira será a única cidade no mundo que tem estátuas de todos os seus toureiros (matadores) ou mesmo ruas com os seus nomes. O público aficionado de Vila Franca, que por alguma razão foi um dia referenciada como "a Sevilha portuguesa", idolatra os seus toureiros - e precisa de os ter. Já não tinha um há alguns anos. E agora apareceu Tomás Bastos (fotos), sobrinho neto daquele que foi o primeiro dos matadores vilafranquenses, o saudoso José Júlio, também sobrinho neto de um dos melhores bandarilheiros da terra, Dário Venâncio, e filho de outro valoroso toureiro local, o antigo novilheiro e bandarilheiro David Antunes.

Tomás Bastos é um caso no toureio como há largos anos Portugal não tinha um igual. Está ainda a dar os primeiros passos, mas a realidade é que já deu para ver a maturidade, a intuição, a raça e a alma, atributos invulgares num jovem da sua idade (16 anos) e que deixam antever um futuro promissor e mesmo fora do normal, incomum.

Fez a sua estreia em público nesta mesma praça "Palha Blanco" na tarde de 2 de Julho, no Colete Encarnado, onde toureou um novilho ao lado de Morante de la Puebla. Foi um verdadeiro estrondo. Depois, foi consolidando a sua posição - e a sua força - tarde após tarde em arenas de Espanha e de França, onde já não passa despercebido a ninguém. Veio a consagração, há três semanas, na Feira da Moita, onde voltou a tourear um novilho, desta vez ao lado de "Juanito", sagrando-se triunfador da Feira e saindo aos ombros pela porta grande da praça "Daniel do Nascimento".

A baixa de Morante, que passou esta temporada a dar dores de cabeça aos empresários, ora vem, ora não vem, desde que também aqui, nesta arena de Vila Franca, na mesma referida corrida de Julho, sofreu a arreliadora lesão no punho que agora o obrigou a parar a temporada, tendo anunciado essa decisão quando faltava uma semana para a corrida da "Palha Blanco"... Primeiro sofreu Pombeiro em Lisboa, agora sofreu Levesinho em Vila Franca.

O empresário vilafranquense colmatou a forçada ausência de Morante com a prata da casa. Mesmo remando contra a maré das vozes maldizentes que o criticaram e quase amaldiçoaram nas redes sociais, Ricardo Levesinho anunciou que não substituia Morante, antes "incorporava no cartel" o Tomás Bastos para lidar dois novilhos da ganadaria espanhola La Cercada.

Encontrou, há que dizê-lo, uma solução inteligente e airosa, demonstrando visão, demonstrando, uma vez mais, que é "à prova de balas" e continua uns furos valentes acima da concorrência.

Teria sido uma desgraça e estariam hoje a rir de satisfação os maldizentes, se o público aficionado, o de Vila Franca e o que veio de fora, tivesse penalizado Levesinho não indo à praça. Mas aconteceu precisamente o contrário. Se alguém devolveu os bilhetes pela ausência de Morante, certamente que muitos outros os foram comprar à bilheteira pela incorporação de Tomás Bastos. A "Palha Blanco" estava cheia até às bandeiras. E a corrida acabou por ser uma das grandes corridas da temporada. Vitória indiscutível de Ricardo Levesinho.

Vitória indiscutível, também, da diferença com que Ricardo Levesinho monta os seus cartéis. Procurando sempre não oferecer mais do mesmo ao espectador.

Assim como as empresas gestoras das praças de Santarém e de Abiul, foi Ricardo Levesinho um dos raros empresários que contratou o cavaleiro Rui Fernandes naquela que foi a temporada de comemoração dos seus 25 anos de alternativa. Os outros empresários, já viciados no pagamento aos toureiros de tostões como na loja do chinês, continuam a repetir sempre os mesmos, sem qualquer inovação nos elencos. Foi também Levesinho, cabe recordar, um dos poucos que contratou Duarte Fernandes - os restantes empresários ainda não viram que, dos novos, é mesmo ele o melhor. Andam a jogar eternamente nos cavalos (cavaleiros, leia-se...) errados... Mas adiante.

Com a praça cheia e um ambiente de outros tempos, a "Palha Blanco" foi ontem palco de uma corrida das que fazem aficionados e enchem as medidas a quem tem a sorte de estar presente. Muitos estiveram ali pela extraordinária composição do cartel, pela presença de Alejandro Talavante, primeiríssima figura do toureio actual, mas também pelo regresso à sua praça da nova estrela de Vila Franca, o jovem Tomás Bastos. Ricardo Levesinho jogou forte e a arriscar. Mas jogou bem. E ganhou a aposta.

No que aos cavaleiros diz respeito, tivemos duas corridas. Uma melhor na primeira parte, outra mais complicada na segunda. 

O primeiro toiro de São Torcato era uma estampa e foi logo aplaudido pelo exigente público da "Palha Blanco" mal entrou na arena. Ao fim de 25 anos de alternativa, Rui Fernandes já não precisa de provar nada a ninguém - mas esteve ali a dar a cara, a "apertar". Vila Franca foi um dos palcos onde alcançou um dos seus primeiros grandes êxitos - numa novilhada matinal em que actuava como único cavaleiro, lembro-me como se fosse hoje.

Lidou brilhantemente este toiro, que tinha presença, transmitia e pedia contas. Brega perfeita, cites com batida ao píton contrário, ferros de grande emoção e vistosos remates com ladeios a duas pistas, com domínio, com poder e com arte. Uma lide de muita maestria e grande solidez na corrida final da temporada de celebração dos seus 25 anos de glória - em que pisou as principais arenas de Espanha, nas feiras mais importantes, mas em que resumiu a sua participação da temporada lusa às praças da Moita, de Santarém, de Paio Pires (onde comemorou entre amigos, e sem pretensões, a efeméride), de Abiul, da Moita (em Maio e em Setembro) e de Vila Franca.

Na segunda parte, os São Torcatos deram que fazer aos cavaleiros. Perigosos, complicados, incómodos. O quinto, de Rui Fernandes, foi um toiro distraído, parado, desinteressado, com arrancões perigosos de mansidão. Valeu a maestria e a experiência do cavaleiro para o lidar como mandam as leis, com valentia e saber, superando todas as dificuldades que o toiro apresentava, triunfando com um oponente que não dava opções para se triunfar. Lide de experiência e saber, repito, que todos entenderam e aplaudiram - todos, menos o director de corrida Ricardo Dias, que negou a Rui Fernandes a música que o seu grande labor merecia. Coisas estranhas que acontecem nesta Festarola nacional...

João Ribeiro Telles chegava ontem à sua "Palha Blanco" altamente laureado por um triunfo memorável na corrida de terça-feira. Mas, infelizmente, não voltou a haver "noite sonhada"...

O seu primeiro toiro, segundo da tarde, era do ganadeiro Jorge Mendes e substituia o anunciado de São Torcato que, embora a empresa não tenha explicado os porquês da troca, me disseram que não tinha nem peso nem trapio próprios para Vila Franca e por isso foi recusado e trocado pelo do ganadeiro de Alcácer.

O toiro de Jorge Mendes, de apresentação q.b. e comportamento "assim-assim", não transmitiu grande coisa, mas deixou-se lidar. João Telles esteve normal, mas apenas regular, sem grandes espaventos. Lide limpa, só isso. Com música e aplaudida volta à arena, mas...

O seu segundo toiro era um São Torcato daqueles que de vez em quando têm que aparecer nas arenas, se não qualquer dia pensamos que isto é tudo coisa fácil, mas que os toureiros não gostam nada de ver pela frente. Toiro perigoso, dos que "pedem o Bilhete de Identidade", com mudanças, a esperar e a adiantar-se barbaridades, a descompor do princípio ao fim. João Telles mais não fez do que andar à defesa, coadjuvado pelos sempre atentos e super eficientes Duarte Alegrete e Miguel Batista. E mesmo assim, não se livrou de uns sustos e outros tantos encontrões.

Quis fazer uma porta gaiola, mas as coisas não correram de feição, sofrendo uma violenta carga, inesperada e brutal, e um valente encontrão contra a trincheira. Depois, esteve valente e decidido nos ferros curtos, mas a lide foi apenas uma lide esforçada, esforçadíssima, sem quaisquer louros. Há toiros que deitam o sonho dos toureiros por água abaixo e este foi um deles...

Tarde dura e emotiva para os forcados, com quatro rijas pegas que já a seguir aqui vos vamos mostrar em pormenor. Por Vila Franca pegaram o cabo Vasco Pereira (à segunda) e Lucas Gonçalves (à primeira). E pelo Aposento da Moita foram caras Martim Cosme Lopes (à primeira) e o cabo Leonardo Mathias (à segunda).

A pé, Alejandro Talavante enfrentou dois toiros (distintos de comportamento, mas ambos de excelente presença e com trapio) da ganadaria espanhola Nuñez del Cuvillo; e Tomás Bastos lidou dois novilhos da também divisa espanhola La Cercada, ambos de nota alta, muito bom o seu primeiro, tendo o director de corrida concedido (muito bem) a volta à arena ao ganadeiro Miguel Moreno Pidal, filho do sempre lembrado rejoneador Gregório Moreno Pidal.

Talavante, calorosamente saudado pelo público com fortíssima ovação no início, esteve em plano de primeiríssima figura que é, dando a cara, toureando admiravelmente os dois toiros, com maior destaque, pela superior qualidade do toiro, na primeira actuação, tanto com o capote, como com a muleta. Vila Franca aplaudiu de pé.

O sétimo toiro da tarde, mais reservado, de investidas menos claras, não permitiu a Talavante que brilhasse com o capote e exigiu-lhe um empenho redobrado com a muleta. O matador voltou a dar a cara e a dizer "estou aqui", não defraudando, dando o seu melhor.

Ressalve-se o factor (importante) de Alejandro Talavante, mesmo optando por lidar toiros de uma ganadaria espanhola nesta sua vinda a Vila Franca, o ter feito perante dois animais com trapio, com peso, idade e presença, não com bezerrinhos, como outros cá vieram... Assim, sim! Olé, Talavante!

A lamentar, apenas e só, a falta de qualidade dos bandarilheiros da quadrilha de Talavante. No seu segundo toiro, seis bandarilhas ficaram caídas na arena. Assim não vale...

Costumam desculpar os subalternos espanhóis com o facto de estranharem em Portugal o diferente andamento dos toiros pela falta dos picadores. Mas, se assim é realmente, os matadores, quando cá vêm, que contratem bandarilheiros portugueses para preencher o tércio de bandarilhas e evitar assim estas desgraças... Tão simples como isto.

Sobre Tomás Bastos já disse quase tudo ao início. Ontem pela primeira vez acompanhado pelos novos apoderados Cristina Sánchez e José Alexandre, mas ainda com os mestres da Escola de Toureio de Badajoz a seu lado, Luis Reina e "El Cartujano", a nova estrela do toureio nacional reafirmou e consagrou todos os dotes que já nos mostrara aqui em Julho e na Moita em Setembro. É, de facto, um caso - como há muito não tínhamos outro igual.

Brindou a sua primeira faena a Talavante e a segunda ao público de Vila Franca. E depois foi, repito, uma loucura total. 

Consciente, tranquilo, talentoso, senhor da situação, com o toureio toda na cabeça, Tomás Bastos esteve imponente nos tércios de capote - bonito, com arte, com mando, com temple e bom gosto -, verdadeiramente fabuloso com as bandarilhas (aquele par em que se emendou na cara do toiro, mudando a rota, denota já uma maturidade e um saber impróprios para um miúdo de 16 anos, provando que estamos, de facto, perante um predestinado), desenhou depois duas variadas e portentosas faenas de muleta, com arte e poderio, domínio e estética invulgares.

O público perdeu a cabeça, confirmou as potencialidades do seu novo ídolo. Se tudo continuar assim, Portugal vai a caminho de voltar a ter uma grande figura do toureio a pé! Força, Tomás!

Destaque final para as intervenções dos bandarilheiros das quadrilhas dos cavaleiros, Hugo Silva e João Santos (de Rui Fernandes), Duarte Alegrete e Miguel Batista (de João Telles) e também para o valoroso "Chamaco", que ontem toureou na quadrilha de Tomás Bastos.

Houve ontem alguns brindes especiais: o dos forcados do Aposento da Moita aos companheiros do Grupo de Vila Franca; o de João Telles a Tomás Bastos e a seu pai, David Antunes; o do cabo do Aposento da Moita, Leonardo Mathias, a Alejandro Talavante; o de Lucas Gonçalves, forcado de V. Franca, ao produtor espanhol Simón Casas, ontem na "Palha Blanco" na qualidade de apoderado de Talavante; e o de Tomás Bastos a Talavante.

Ricardo Dias dirigiu competentemente esta corrida, apenas falhando pela não atribuição de música no quinto toiro a Rui Fernandes, tendo ontem estado assessorado pelo médico veterinário Jorge Moreira da Silva.

A fantástica corrida terminou com o público todo nas bancadas (ninguém arredou pé) a aplaudir as saídas em ombros pela porta grande de Talavante e Tomás (fotos de baixo). Um sucesso!

A lamentar, apenas, o demasiado fluxo de trânsito pedonal verificado ontem na trincheira da "Palha Blanco". Estavam os tios, os primos, os amigos dos tios e das tias, enfim. Benditos tempos da pandemia, salvo seja, em que as trincheiras das praças só lá tinham quem tinha mesmo de lá estar...

Fotos M. Alvarenga