quarta-feira, 18 de junho de 2025

"Tardes de Solidão": um filme mais anti do que propriamente taurino...

Miguel Alvarenga - Não é preciso ser crítico de cinema, neste caso até basta ser aficionado à arte tauromáquica, para opinar sobre os resultados finais do filme "Tardes de Solidão" do realizador espanhol Albert Serra, que aparentemente pretende mostrar um dia da vida de um toureiro - neste caso, do matador peruano Andrés Roca Rey - e que foi premiado no Festival de Cinema de San Sebastián com o Prémio Feroz Zunemaldia 2024 para o melhor filme em competição na secção oficial do referido festival.

Tinha lido algures que é um “documentário complexo e visualmente milagroso que legitima a beleza da tourada e questiona a crueldade sádica sobre os animais. É uma obra de arte total sem respostas simples”.

Fui ver ontem o filme ao "El Corte Inglés", em Lisboa. Estariam na sala umas oito ou nove pessoas, não mais. O que explica que o filme - e o tema, sobretudo - não é um êxito comercial. Presume-se que quem vai ver as "Tardes de Solidão" de Albert Serra sabe ao que vai. Ou então, é até capaz de se assustar, de se sentir desiludido, de sair a meio, especialmente se não gostar de touradas. Ontem, entre os oito ou nove espectadores que estavam na sala 11 do cinema UCI do "El Corte Inglés", uns sete, pelo menos, eram aficionados que conheço.

Li várias, mas numa entrevista concedida à agência Efe, o realizador Albert Serra afirma que o toureiro Roca Rey e a sua quadrilha (equipa de bandarilheiros e outros colaboradores) não gostaram do resultado final e até o consideraram "uma traição". De certo modo, concordo.

O filme pretende mostrar o dia de vida de um toureiro, desde a preparação e vestimenta no quarto de hotel, aos diálogos com os seus bandarilheiros no caminho para a praça e no regresso da mesma, passando pelos momentos vividos na arena durante a faena.

As imagens são, nalguns casos, exageradamente brutais. Há sangue a mais para quem queria, aparentemente mostrar apenas o dia da vida de um toureiro. Há demasiados planos focados em toiros a morrer, na puya sangrenta e feroz do picador a espicaçar o toiro (um pormenor da corrida que começa a ser altamente contestado em Espanha pelos próprios entendidos) - imagens cuja divulgação agrada muito mais aos anti-taurinos do que aos amantes da Festa Brava. 

Também não se pode criticar muito essas imagens: elas espelham uma realidade. E toda a gente, até os que gostam, reconhece que a tourada é um espectáculo bárbaro, sanguinário, onde a morte se confunde muitas vezes com a glória. Albert Serra mostra neste filme a realidade e a verdade da tauromaquia.

Por outro lado, Albert Serra mostra (propositadamente, presume-se) muitos momentos de tragédia (colhidas de Roca Rey) e poucos de glória. Não há momento algum em que se veja a glória do toureiro, o festejo do triunfo a seguir à corrida. Há apenas diálogos de angústia e ansiedade, muitas referências do próprio Roca Rey, na carrinha de quadrilhas, a regressar das corridas, aos toiros que "o tentaram matar", aos toiros a que variadas vezes são referidos como "cabrões", em contraste com "os tomates" (a valentia) do toureiro.

Além disso, vê-se quase sempre Roca Rey sentado na carrinha a regressar ao hotel envergando uma bata azul e não o traje de luces, isto é, quando vai a caminho da praça vai trajado de toureiro e quando regressa da corrida vem vestido de doente, com a tal bata azul com que vestem os doentes nos hospitais, dá a entender que passa sempre pela enfermaria depois de tourear...

Os planos, mas isso será a forma de filmar do realizador, são demasiado apertados, muito centrados em pormenores, raramente se vendo toiro e toureiro por inteiro.

Albert Serra mostra mais o sangue do toiro do que a glória do toureiro, se bem que ela esteja também patente nas faenas de Roca Rey, que mais parecem guerras num campo de batalha onde o cineasta pretende deixar a mensagem de que já não existe muita razão de alguém estar.

E não teria custado nada ao realizador mostrar, num segundo que fosse, que este espectáculo é bárbaro, é sanguinário, mas tem milhares de adeptos. Há faenas filmadas na Monumental de Madrid e outras na Real Maestranza de Sevilha. Roca Rey é o toureiro que mais gente leva às praças, que as esgota sempre que se anuncia (Madrid acolhe mais de 22 mil espectadores nas suas bancadas, quase 23 mil). Não custava nada subir um nadinha o plano e mostrar a multidão eufórica na praça cheia. Além de que Madrid e Sevilha são duas das mais bonitas praças de toiros do mundo e não ficaria nada mal, antes pelo contrário, ao realizador (espanhol, ainda por cima) mostrar ao mundo as belezas e as tradições do seu país.

Em suma, o filme tem declaradamente um efeito muito mais negativo do que positivo em relação ao espectáculo tauromáquico. Não comento a genialidade cinematográfica de Albert Serra, porque bem sequer tenho bases para o fazer. Mas comento a intenção: que não terá sido a de passar uma mensagem favorável em relação à corrida de toiros.

Roca Rey e a sua quadrilha têm razão quando consideram que o resultado final revelou "uma traição".

Fotos D.R./"Tardes de Solidão"