quarta-feira, 23 de julho de 2025

Respirei ar puro, levei balões de oxigénio, voltei à Terra dos Bravos!

Miguel Alvarenga - Parece que foi ontem ou anteontem, mas passaram já 38 anos, uma vida, sobre aquele primeiro dia em que, cheio de expectativas e mil curiosidades, aterrei pela vez primeira nas Lajes, Ilha Terceira

Era Agosto de 1987. Luis Rouxinol tomara a alternativa umas semanas antes em Santarém e apresentava-se nos Açores numa das duas corridas das Festas da Praia, que se realizaram numa praça portátil junto ao campo de futebol e perto da Base Aérea (Aeroporto) das Lajes, na Praia da Vitória

Os cartéis eram de enorme categoria. Com Rouxinol, alternavam Paulo Caetano e o cavaleiro local João Carlos Pamplona; a pé, dois figurões de Espanha, Dámaso González e "Niño de la Capea" e o então ainda novilheiro português Manuel Moreno. E nas pegas, os Forcados Amadores Lusitanos, capitaneados por Francisco Costa (segundo cabo do grupo, que sucedera a Fernando Hilário) e os ainda jovens Amadores da Tertúlia Tauromáquica Terceirense.

Ficou na história - e ainda hoje há quem disso se lembre bem... - a colhida que sofrei na Praia da Vitória, no areal da Terra dos Bravos, durante uma tourada à corda... em que me distrai e comi sopinha de corno. Fui salvo pelos Forcados Lusitanos, que assistiam no paredão e num ápice apareceram na praia para me dar "ajudas"...

Depois, durante muitos anos voltei sempre à Terra dos Bravos, ora por ocasião das Sanjoaninas, ora por alturas das Festas da Praia, umas vezes para fazer a cobertura das corridas de toiros, mas outras também para fazer o gosto à voz e cantar uns fadinhos. Cantei com o Gonçalo da Câmara Pereira (e o Henrique de Carvalho Dias) no Clube Praiense. E pisámos duas noites o palco do emblemático e bem bonito Teatro Angrense por ocasião das Sanjoaninas, no início dos anos 90, com o espectáculo "Fado é Vida", também com o meu amigo Gonçalo da Câmara Pereira e todo o elenco, de que faziam parte, entre outros, o Zé da Câmara, a Mané Telles da Gama (recentemente falecida), o Eduardo Falcão, a Francisca da Câmara Pereira, o Rui Neiva Correia e os nossos saudosos guitarristas Manuel Cardoso e Aurélio Nabais. Bons tempos. Inesquecíveis.

Apaixonei-me desde a primeira hora pela Ilha Terceira e pelas suas gentes. Tão amáveis, tão verdadeiras e tão puras. Da comissão das Festas da Praia desse ano de 1987 faziam parte vários taurinos com quem ainda hoje mantenho uma especial relação de amizade. Casos do amigo Silveirinha, que esta semana tive o gosto de por lá reencontrar. Casos, também, do Auledo Gomes, do Parreira, dos saudosos Almerindo e Valdemar Barcelos. Nunca esquecendo um amigo tão especial como o era Ricardo Jorge, escritor, crítico taurino, antigo cavaleiro amador, um homem de fino trato e esmerada educação - de que me lembro sempre com muita saudade e emoção. Ainda agora reencontrei suas filhas. E conheci seu neto, o Bernardo Belerique, que é o novo cabo, desde as últimas Sanjoaninas, do Grupo de Forcados Amadores da Tertúlia Terceirense.

E há muitos outros. O Carlos João Ávila, o António Pontes, homens da Festa que fazem parte da história da tauromaquia desta ilha. Encontrá-los, como agora voltou a acontecer, é sempre uma forma de lembrar o passado e de ir ao encontro de raízes que aqui criei e nunca mais perdi.

Voltei à Terra dos Bravos para assistir à Corrida do Ramo Grande, uma organização primorosa dos incansáveis irmãos Manuel e Nuno Pires (ambos na foto de cima - o primeiro, ex-cabo dos Forcados do Ramo Grande; o segundo, presidente da União Tauromáquica do Ramo Grande) e de Paulo Pires, o homem da logística - e de tudo.

A Corrida do Ramo Grande nasceu depois das guerras políticas que opuseram os Forcados do Ramo Grande à Câmara da Praia da Vitória, que tiveram (e têm ainda) por consequência a realização anual da Corrida das Festas da Praia sem a presença no cartel do grupo de forcados da Praia, o do Ramo Grande. Era o mesmo que se realizassem as corridas da Feira de Santarém sem o Grupo de Santarém, ou as de Alcochete sem os dois grupos de Alcochete...

Vai daí, os Forcados do Ramo Grande e a sua União Tauromáquica deitaram mãos à realização anual de uma nova corrida, a do Ramo Grande, que já conquistou data e espaço na temporada terceirense - e cujo cartel tem sido sempre de alto gabarito, melhor de ano para ano.

Este ano, vieram os cavaleiros João Moura Caetano (repetido depois de ter sido o triunfador da corrida do ano passado) e João Salgueiro da Costa (um dos cavaleiros que está a marcar a temporada continental - e isso mesmo deixou bem patente na arena da Ilha Terceira); e Paco Duarte, ex-matador de toiros, taurino da velha guarda, há quatro anos a apoiar a realização desta corrida, voltou a dar uma mão aos manos Pires e aconselhou a que viesse o matador Ismael Martín, de Salamanca, recém-triunfador da Feira de Burgos, uma figura em efervescência no país vizinho e que iria "cair bem" nos Açores, como caiu, por ser um poderoso (apesar do seu ar frágil) e dominar na perfeição os três tércios, em especial o das bandarilhas, tão do agrado dos aficionados açoreanos.

Foi um sucesso a aposta de Paco Duarte. E o resultado ficou selado nesta foto que aqui deixo - o abraço de reconhecimento de Ismael Martín ao taurino português quando dava uma das três voltas à arena com que os aficionados, em delírio, premiaram a sua entrega, o seu profissionalismo, a sua arte e os seus dois grandes triunfos nesta tarde de sexta-feira passada.

As pegas, como aqui referi oportunamente, estiveram a cargo dos dois grupos terceirenses, os da Tertúlia e os do Ramo Grande, que executaram as quatro ao primeiro intento.

Lidaram-se a cavalo quatro toiros de nota alta de João Gaspar (toiros mesmo, muitíssimo mais toiros do que muitos dos toiros que se anunciam no continente, muito embora tivessem os três anos e por isso, por honestidade dos organizadores, se ter anunciado o festejo como uma novilhada), destoando apenas o segundo, mal visto, que coube a Salgueiro (grande triunfador). E a pé, o matador espanhol enfrentou um bonito toiro jabonero de Rego Botelho, com qualidade e presença; e outro de excelente nota de Casa Agrícola José Albino Fernandes, com ambos elevando bem alto a bandeira do Toureio a Pé.

Na Ilha Terceira, como também nas ilhas de São Jorge e Graciosa, onde se realizam espectáculos taurinos, o público é aficionado de verdade. Sobretudo ao toiro, mas também à Festa, ao espectáculo. Na Monumental da Ilha Terceira é impressionante o silêncio que (não) se ouve nas bancadas quando os forcados saltam à arena. "O Som do Silêncio". De arrepiar. Há respeito. Há aficion.

Fora da praça, vive-se o ambiente que se vivia no mundo tauromáquico nacional (continental) nos anos 60. O que também impressiona. Os toureiros são ídolos. Cá pelo continente, pelo chamado Portugalzinho das Toiradas, já ninguém conhece os toureiros, que há muito deixaram de ser ídolos. Mas na Terceira, por onde passou Ismael Martín nos dias que se seguiram, todo o mundo o reconheceu e o veio felicitar e tirar fotos a seu lado. "Olha, vai ali o toureiro!". Na foto de cima, no almoço da Sopa do Espírito Santo em São Bento, de que falarei adiante, Ismael fotografado com duas aficionados que logo o reconheceram.

Vivi quatro dias intensos entre a aficion terceirense. Quase sempre na excelente companhia do meu querido Paco Duarte, mas também da equipa do matador Ismael Martín, que veio acompanhado por Ángel Castro (seu apoderado, juntamente com Nacho Matilla, que ficou em Espanha), pelo seu bandarilheiro Isidoro de Prado e pelo seu moço de espadas Francisco Esteban González Ronco, simpática equipa a que se juntou o valoroso bandarilheiro luso Joaquim de Oliveira.

Por mais que uma vez estivemos no Café de António Padeiro, na freguesia de São Bento, em Angra, quartel-general de muitos aficionados terceirenses. Na foto de cima, com Paco Duarte e a equipa de Ismael Martín, com o anfitrião António Padeiro, faltando apenas a Cristina, sua Mulher, a quem agradecemos todas as simpatias, que não está na foto por ter sido a autora da mesma.


E no último dia até tivemos a agradável (e única!) experiência de almoçar na companhia de... 575 amigos, no almoço da famosa Sopa do Espírito Santo no Edifício Cultural de São Bento. Onde muitos voltaram a reconhecer Ismael Martín e se quiseram fotografar ao lado do toureiro que dois dias antes tinham visto triunfar com tanta força na Monumental.

No sábado de manhã, gravei uma entrevista (giríssima) feita por José Paulo Lima e Orlanda Gomes, com assistência e apoio técnico do eficiente Mário Lima, para o louvável programa "Tauromaquia Viva" do Rádio Clube de Angra - que foi para o ar na passada segunda-feira e que pode ser ouvida aqui no "Farpas": https://farpasblogue.blogspot.com/2025/07/tauromaquia-viva-radio-clube-de-angra.html

Para resultar, como esta resultou, uma entrevista não depende só do entrevistado, depende muito e sobretudo do entrevistador, dos entrevistados neste caso, e tanto a Orlanda como o José Paulo são excelentes aficionados (na véspera tinham feito o relato em directo da corrida para a rádio, como se fosse um relato de futebol, o que não é fácil) e belíssimos jornalistas, estavam documentos sobre mim "da cabeça aos pés", pelo que as perguntas tiveram interesse e impacto. Parabéns aos dois - e Obrigado!


Na corrida de toiros, houve duas justíssimas homenagens - uma ao Maestro Paulo Caetano, que desfruta há muitos anos de um carinho e uma admiração especiais por parte dos aficionados desta ilha. Foi homenageado pela União Tauromáquica do Ramo Grande, cujo presidente Nuno Pires lhe ofereceu um bonito quadro a carvão da autoria do pintor e antigo forcado Diogo Amaro; e recebeu ainda as homenagens do proprietário de uma Queijaria local, grande admirador do Maestro. Ao inicio da corrida, com breves e improvisadas palavras, passei em revista a trajectória de glória de Paulo Caetano pelo mundo tauromáquico (fotos de cima).

Ao intervalo da corrida, a União Tauromáquica do Ramo Grande homenageou também Mário Aguiar Rodrigues, nome incontornável no que respeita à informação e divulgação da tauromaquia terceirense, que defendeu e enalteceu ao longo de muitos anos não apenas na imprensa escrita, mas também em rádio e na televisão. Suzana Semião, presidente da Assembleia-Geral da União Tauromáquica do Ramo Grande, fez a entrega de uma lembrança ao famoso jornalista - muito aplaudido pelo público.

Em suma, regressei a Lisboa com a alma nova. Com vários balões de oxigénio (taurino!) e as baterias totalmente recarregadas e renovadas por obra e graça da aficion desta Terra dos Bravos. Onde a Festa Brava tem uma categoria e uma intensidade diferentes. Um esplendor e um glamour, aqui sim, que não têm nada a ver com a bagunça actual da Festarola nacional.

Afirmo e repito, perfeitamente consciente da realidade em que estou a tocar, doa a quem doer: mais tarde ou mais cedo, graças - ou por desgraça - da estupidez, da má formação, da maldade e da mesquinhez e das trapalhadas da maioria dos que hoje ditam as leis na nossa tauromaquia (que nunca mais voltará a ser como era), o espectáculo tauromáquico vai acabar de vez. Não por acção dos anti-taurinos. Coitados, esses defendem os seus ideais sem fazer mal algum a ninguém. Antes pelo cansaço que os ditos taurinos estão a provocar no público - as touradas são sempre com os mesmos e não há um que justifique a nossa deslocação a uma praça... como noutros tempos o justificaram João Moura, Pedrito de Portugal e muitos poucos mais... Comemos mais do mesmo a toda a hora...

E quando isso acontecer, quando se fechar de vez a porta, não vai faltar assim tanto tempo, há um espaço na geografia nacional onde as touradas nunca vão acabar e sempre continuarão - esse espaço chama-se Açores. Chama-se Ilha Terceira. Chama-se Ilha de São Jorge e Ilha Graciosa.

Daquele outro lado do Atlântico, a tauromaquia está viva, respira saudavelmente e recomenda-se. Não tem nada, mesmo nada, que ver com a barafunda e o sempre "mais do mesmo" que acontece aqui pelas nossas bandas.

Por isso, estou tranquilo. Não me preocupo minimamente. Quando as touradas acabarem aqui, mudo-me de arma e bagagens para a Terceira. Para a minha Terra dos Bravos.

Fotos M. Alvarenga

Mais logo, não perca todas as fotos: Famosos na Terra dos Bravos.