"Eu hoje não sei falar, não saberia dialogar, com esta nova gente que manda no mundo dos toiros. Salvo raríssimas excepções e nem vale a pena apontá-las, são pessoas que não têm nada a ver com a minha forma de ser. Apoderei vários toureiros e sempre houve diálogo com os empresários. E vice-versa, fui empresário e sempre houve diálogo com os apoderados e os toureiros. Hoje em dia está tudo mudado, está tudo ao contrário…”.
As palavras são de Rogério Amaro (Janeiro de 2018) num célebre jantar em Lisboa comigo e o seu antigo sócio António Manuel Cardoso "Nené", que viria a morrer tragicamente num acidente de automóvel três semanas depois deste encontro que promovi com os dois antigos sócios da empresa Toiros & Tauromaquia, que geriram desde o início dos anos 80, durante vinte e um anos. Tinham-se separado dez anos antes e Rogério afastara-se do mundo dos toiros.
De facto, o meio tauromáquico (de hoje) já não tinha (não tem) nada a ver com ele. Não foi por acaso que João Salgueiro justificou há uns anos a sua retirada das arenas numa célebre entrevista a Luis Miguel Pombeiro pelo facto de já nada ser como era, de os toureiros já não se vestirem nos melhores hotéis, já não jantarem nos melhores restaurantes, já não andarem nos melhores carros e de já não haver "apoderados bem vestidos na trincheira como o Rogério Amaro".
O Rogério personificava isso tudo e era a grande referência do "antigamente". Foi um gentleman, foi um bon vivant, foi um Senhor, o último Grande Senhor dos empresários tauromáquicos nacionais. Essa forma elegante, educada, refinada, de estar na vida, valeu-lhe, entre os amigos mais íntimos, a célebre alcunha de "Pipi" - que lhe assentava que nem uma luva.
Restam poucos, muito poucos - não preciso de os referir - dessa peara, desse tempo em que a tauromaquia era um meio senhorial e de fidalguia, por mais simples e humildes que fossem as origens desses Senhores - que o foram, mesmo sem terem nascido fidalgos. Mas eram-no no trato, na forma de estar e de viver. Marcavam a diferença. E o Rogério Amaro marcou-a. E de que maneira!
Regressaria aos toiros poucos meses depois deste nosso jantar para voltar a apoderar Joaquim Bastinhas no seu curto regresso às arenas, dois anos depois de um grave acidente que o obrigou a parar.
Tinham-se separado, após dezasseis anos de união profissional e de amizade, em Agosto de 2009. "É tempo de ir de férias e de me dedicar a tempo inteiro à minha família e sobretudo à minha neta, que adoro", disse Rogério Amaro na altura ao "Farpas", afastando a hipótese de vir a apoderar mais algum toureiro.
Além de destacado forcado e cabo de forcados, de empresário tauromáquico que marcou uma época - chegou a gerir com "Nené" quase todas as praças nacionais, menos a do Campo Pequeno, onde nunca escondia desejar um dia chegar - Rogério Amaro foi também apoderado das maiores figuras do toureio português, entre as quais José Mestre Batista, Joaquim Bastinhas, João Palha Ribeiro Telles, Paulo Caetano, João Salgueiro, Vitor Mendes e Rui Bento Vasquez, bem como João Telles (filho) nos seus começos como amador e Marcos Bastinhas enquanto cavaleiro amador e praticante, entre outros.
E há dois anos, mesmo contrariado, Rogério Amaro não soube dizer não ao velho amigo de tantos anos quando este o desafiou para o voltar a apoderar. Estiveram de novo lado-a-lado apenas em duas corridas: em 21 de Julho quando Bastinhas reapareceu na Figueira da Foz e em 23 de Setembro desse mesmo ano de 2018, quando o mais popular dos toureiros nacionais actuou pela última vez no Coliseu de Elvas. Joaquim Bastinhas morreu no último dia desse mesmo ano. Rogério voltou a afastar-se. Do mundo dos toiros. Nunca dos amigos.
Falámos frequentemente ao longo deste ano horrível e sobretudo nos tempos do confinamento. Várias vezes marcámos um jantar no "Solar dos Nunes", onde costumava almoçar todos os dias. "Não te esqueças de mim, combina esse jantar", fartou-se de me dizer. Nunca o esqueci. Mas o jantar ficou por se fazer. Rogério almoçou pela última vez no seu "Solar dos Nunes" na quarta-feira, 21 de Outubro, dois dias antes de ser internado.
A nossa amizade, profunda, intensa, durou uns quarenta anos. Conheci o Rogério - que também se chamava António e a quem eu tratava por Roger - quando era forcado, acompanhei depois de perto a sua trajectória empresarial com o "Nené". Chamavam-lhes os "Choperitas". Vivemos muitos momentos juntos. Inesquecíveis.
Nos anos 80, quando trabalhei no jornal "O Diabo", cuja sede era na Rua Alexandre Herculano, uma vez por semana ia ter com ele à Barata Salgueiro, ali mesmo ao lado, onde tinha o seu escritório e íamos almoçar - almoços que duravam até às tantas - ao "Solar dos Presuntos", com o "Nené" e o Carlos Amorim (que também trabalhava ali pertíssimo, na Praça da Alegria, no antigo Sindicato dos Toureiros). Muitas vezes vinha também o José Manuel Martins da Silva, que nós tínhamos baptizado de "Topo Gigio", outro amigo desse tempo.
"O toureio é grandeza!" - era a sua afirmação preferida. E vivia-a na plenitude. Embora fosse um "pisco" a comer, como ele próprio dizia, só frequentava os grandes restaurantes, só bebia uísque do melhor. Só dormia nos melhores hotéis. Levou uma vida à grande - porque a vida isso lhe permitiu.
Ganhou muito dinheiro com os toiros, como ele próprio gostava de dizer. Mas deu também muito dinheiro a ganhar no mundo dos toiros. E era um trabalhador incansável. O primeiro a entrar e o último a sair sempre do seu escritório da empresa de transitários. Viajava muito em trabalho. Percorreu o mundo. E conseguiu sempre aliar a sua actividade profissional às suas várias actividades na tauromaquia. Foi um homem que viveu a vida com intensidade. E com graça. E com gosto.
Mesmo depois de ter abandonado o mundo dos toiros, a nossa amizade continuou a ser cimentada em telefonemas, em almoços, em jantares. Aos toiros ele deixou de ir. Mas mantinha-se informado de tudo.
Falámos pela última vez há cerca de um mês. E o Rogério voltou a desafiar-me para o tal almoço que, por isto ou por aquilo, nunca se chegou a realizar.
Perdi um Amigo. Já perdi tantos, meu Deus. Com quem aprendi muito. Com quem ri tanto. Não é fácil.
Era ainda novo, novo demais para morrer. Mas viveu a vida como quis, à sua maneira e sem nunca admitir interferências. Acabou-a também como quis, irritando-se quando lhe dizíamos que tossia muito, que estava magro demais, que devia ir ao médico, que não devia fumar tanto nem beber tantos uísques sem comer. Cometeu os erros que lhe apeteceu, divertiu-se como quis, viveu sempre a vida com a intensidade desenfreada que o caracterizava, como se todos os dias fossem sempre o último. Era assim e não havia nada a fazer.
Rogério Amaro foi casado com Maria de Jesus, falecida em 2017.
Um beijo à Patrícia, sua filha. Às netas que ele adorava. A Maria de Fátima, sua irmã.
Descansa em paz.
Miguel Alvarenga
No Campo Pequeno no ano passado na noite de homenagem à memória de Joaquim Bastinhas |
Rogério Amaro foi o último apoderado de Mestre Batista |
Volta à arena da "Palha Blanco" |